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Crítica | Crimes de Família – Entre o amor e a descrença

Diretor Sebastian Schindel traz verdades cruéis em uma narrativa simplista, mas extremamente necessária e urgente.

Quando um filme arrisca-se a contar uma história densa que retrata a dura realidade vivida por diversas mulheres em todo o mundo, ele tem a difícil missão de dar voz aos personagens ficcionais, que simbolizam personagens reais do nosso dia a dia. Muitos filmes e séries já assumiram tal missão, expondo situações que orbitam esse fato social. Recentemente, um longa-metragem que se dispôs a discutir essa temática foi Crimes de Família; drama argentino que estreou no catálogo da Netflix, dissecando as dores e os dilemas de uma mãe que se vê no meio de uma ruptura familiar.

Sinopse Crimes de Família:

Crimes de Família acompanha Alicia (Cecilia Roth), uma mãe que se encontra desesperada para fazer com que seu filho Daniel (Benjamín Amadeo), acusado de tentar matar a ex-mulher, não seja preso. Durante o processo, Alicia acaba descobrindo algo que mudará o rumo de sua vida para pior.

Crimes de Família - Até onde o amor materno é capaz de ir?
Crimes de Família / Netflix

Há dois anos, eu apertei o play para assistir a aclamada série Big Little Lies. Com atuações fortes e cenas pesadas, Nicole Kidman me fez ver os traumas e o ciclo do ódio que habita alguns lares. Rompendo a visão externa e nos colocando na pele da personagem, a série fez algo crucial: deu espaço para um importante assunto. Agora, em 2020, este mesmo tema surge diante de mim com o longa Crimes de Família. Com diferentes abordagens e algumas semelhanças (como tornar o tribunal palco para momentos-chave), o filme argentino aposta em apenas uma personagem para guiar a história. Uma escolha que, talvez, poderia ter sido diferente.

A maioria das pessoas, em algum momento da vida, escutou o seguinte ditado popular: “Mãe é tudo igual, só muda o endereço!“. Será? Sabe-se que o amor materno é uma força da natureza capaz de fazer uma mãe pular em um rio, sem saber nadar, para salvar a vida do seu filho. Esse sentimento tão poderoso pode nublar a capacidade de enxergar detalhes, e é isso que acontece com a personagem Alicia. É através do ponto de vista dela que iremos mergulhar nas teias de acontecimentos e consequências. Ou quase isso!

Crimes de Família - Até onde o amor materno é capaz de ir?
Crimes de Família / Netflix

No começo, observamos uma mulher controladora, vestindo uma armadura oferecida pelo seu status social, utilizando-a para inocentar seu filho de acusações graves. Dividindo sua rotina em beber chá com as amigas ricas, dedicar um pouco do seu tempo em cuidar do filho de sua empregada e lidar com sua crise familiar, Alicia é uma personagem, muitas vezes, acompanhada pelo silêncio. É na quietude de suas cenas que escutamos as vozes que gritam dentro dela. Uma atuação introspectiva, mas poderosa, feita por Cecilia Roth (que atuou no filme Dor e Glória). A atriz deixa boa parte de suas emoções serem expressadas por seu olhar ou sua interação com “objetos de cena” — particularmente com um celular e um jogo de louças.

Existem mais duas figuras maternas importantes para o desenrolar do enredo. Marcela (interpretada pela atriz Sofía Gala) é a personagem que luta em provar os crimes que foram cometidos pelo filho de Alicia. Sondada pelo medo e pelo instinto de proteger seu filho, Sofía incorpora uma imagem que conversa com as vítimas de violência doméstica, no entanto, essa conversa acaba sendo subdesenvolvida.

A outra figura é Gladys (vivida por Yanina Ávila), personagem rodeada de mistérios, que trabalhou na casa de Alicia e que agora enfrenta uma sombria jornada nos tribunais, também. Com uma incapacidade de se expressar com clareza, a doméstica carrega em seu olhar perdido traumas do passado e do presente. Dela, partem pouquíssimas falas, o que deixa sua atuação corporal com a grande função de dizer aquilo que ela está sentindo.

Crimes de Família - Até onde o amor materno é capaz de ir?
Crimes de Família / Netflix

Veja, essa dupla carrega um peso grande dentro da história, todavia, ambas ficam apagadas por uma sucessão de escolhas no roteiro que as colocam como “figuras de fundo”, infelizmente. Essa é a grande falha do filme, ou seja, o maior “crime” de Crimes de Família é não dar voz o suficiente e mais tempo de tela para personagens que mereciam isso. Apostar somente no ponto de vista de Alicia apagou a oportunidade de mergulhar mais fundo na premissa que o roteiro prometeu discutir. Somado a isso está uma narrativa fragmentada que se arrasta no primeiro ato e alguns diálogos que parecem incompletos.

Sebastian Schindel, além de dirigir, também assina o roteiro ao lado de Pablo Del Teso. Desde a primeira cena, que coloca o telespectador no fim de um corredor, observando algo de longe, a narrativa não se prende a exposições fáceis. Os flashbacks cumprem bem o papel de, pouco a pouco, revelar a interação que existiu entre os personagens. Nada nunca é mostrado com clareza, deixando as ações dos personagens sustentadas por mistérios. Em boa parte da projeção caberá a você formular uma opinião sobre os ocorridos.

O infortúnio é que o desfecho é totalmente previsível, e no terceiro ato, quando o texto de Schindel e Del Teso começa a desatar os nós criados ao longo da película, não há impacto, tampouco surpresas, o que faz a virada de roteiro perder força. Fiquei me perguntando, por um longo tempo, como a protagonista não chegou a mesma conclusão antes.  Talvez, o lado sentimental a impediu de ver as coisas com mais clareza.

Crimes de Família - Até onde o amor materno é capaz de ir?
Crimes de Família / Netflix

A trama aproveita alguns pontos para pincelar outras críticas sociais. Enquanto duas histórias distintas são contadas ao mesmo tempo, observa-se alusões feitas ao poder que o dinheiro exerce em um julgamento, como comprar a verdade. Também aparecem sutis referências as futilidades e a falta de empatia que cerca a bolha da alta sociedade.

Quando o amor de mãe é colocado a prova, perante crimes hediondos, o que prevalecerá? A proteção ao filho ou a desconfiança perante indícios?

Em um mundo bombardeado 24 horas com relatos e notícias sobre crimes contra a mulher, é de se esperar que essa temática ganhe cada vez mais espaço nas telas. Crimes de Família é um recorte cru e intimista sobre os horrores que cercam muitas mulheres: viver debaixo do mesmo teto de um agressor. No fim, não existe um herói, tampouco uma salvadora; há apenas um retrato humano de arrependimentos e escolhas.

Nota: 3,5/5

Assista ao trailer do filme:

Veja também: Crítica | 3% – Series Finale.

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