[ENTREVISTA] Da Ponte pra Cá: documentário gravado em um celular chega às principais mostras de cinema do Brasil
De fato, não há o que questionar sobre a qualidade do audiovisual brasileiro. O país é reconhecido mundialmente pelos lançamentos de grandes filmes, séries, clipes e novelas. No entanto, é sabido também que produtores, atores e cineastas lutam muitas vezes mais para superarem as barreiras sociais e conseguirem se destacar na profissão.
Para provar que existe muito potencial escondido na cultura brasileira, as jornalistas Isabela Alves, Mariana Lima e Letícia Erba produziram o documentário “Da Ponte pra Cá”. Em conversa exclusiva com o Portal Cinerama, elas contaram como a obra desenvolvida para o projeto Repórter do Futuro, em parceria com a empresa de comunicação OBORÉ, revela os desafios de se fazer cinema na periferia da capital paulista.
Da Ponte pra Cá: de onde surgiu a ideia?
“A gente não tinha referências, infelizmente. O cinema independente no Brasil ainda é uma questão muito distante de muitos brasileiros. Até mesmo ir ao cinema hoje em dia é uma coisa inacessível”, começa contanto a jornalista Isabela Alves (25). De acordo com a profissional, a ideia surgiu da vontade de aproveitar o assunto do curso que estavam fazendo na época, o “Cinema e Jornalismo: Luzes sobre São Paulo”, promovido pelo projeto Repórter do Futuro.
“Eu e as meninas somos de diferentes distritos periféricos de São Paulo. Eu sou do Grajaú, a Mariana é de Parelheiros e a Letícia do Jardim São Luiz. Então, apesar de não termos referências nós pensamos: ‘vamos fazer na zona sul o Da Ponte pra Cá’”, complementou.
Devido ao distanciamento cada vez maior da população com cinema, principalmente o independente, Isabela diz que foi necessário fazer pesquisas para adquirir conhecimento acerca do assunto. “A gente foi pesquisando na internet e, graças à uma matéria da Agência Mural, encontramos o Lincoln Péricles (diretor) e através dele nós fomos nos conectando aos outros diretores”, disse Alves.
O desafio de gravar tudo em um celular
De certa forma, tem até se tornado comum ouvir que alguns diretores utilizaram uma câmera de celular para gravar um filme. Mas, diferente de muitos que usam como único recurso possível, para a produção de “Da Ponte pra Cá” o celular pareceu ser a melhor opção diante de todo o equipamento disponível.
“Todas na equipe tinham câmeras fotográficas semiprofissionais que poderíamos ter usado, mas por uma questão de praticidade escolhemos o celular. Sabíamos que muitos diretores famosos vinham utilizando este recurso – apesar de nenhuma de nós ter um celular de última geração -, o que de certa forma serviu de referência”, revelou Mariana Lima (25). “Levamos a sério a frase ‘uma câmera na mão e uma ideia na cabeça’ e gravamos.”
No entanto, além do desafio de produzir tudo utilizando um aparelho celular, as jornalistas também tiveram de enfrentar outros obstáculos para conseguir chegar no tão admirado resultado final. Com toda a certeza, o tempo foi um dos maiores desafios para a produção do curta-metragem. A montagem final foi outro processo que exigiu maior atenção, já que foi realizada em um espaço de apenas dois dias.
“Tínhamos um material bruto muito interessante, então cortar parte das entrevistas e depois alinhar tudo em uma narrativa coesa que contemplasse o que queríamos contar foi bem difícil”, afirmou Mariana.
A referência ao Racionais MC’s
Em uma tentativa de mostrar que ao contrário dos cineastas que têm suporte e estrutura constante nos centros, os criadores periféricos precisam “se virar nos 30” para conseguir contar as histórias que querem, o documentário foi nomeado com o título de uma música do Racionais MC’s. O grupo de rap fundado em 1988 serviu como inspiração para o desenvolvimento da produção das jornalistas.
“Tinha de ser esse nome. A música é bem conhecida e reflete a vivência de quem é da zona sul de São Paulo. A referência tinha de ser feita”, declarou Letícia Erba (25).
Ainda sobre a homenagem ao grupo conhecido pela forte influência na música brasileira, Isabela declarou que “os Racionais são as referências. Eles querem empoderar a periferia a partir da arte deles. Eles uniram as periferias de São Paulo e mostraram que hip-hop é educação, é potência e a gente pode estar em todos os lugares que a gente imaginar. O hip-hop salva muitas vidas ainda hoje e a gente quis prestar essa homenagem a eles.”
A mensagem que “Da Ponte pra Cá” deixa ao público
Assistindo ao documentário, é possível perceber a linha de direção que as criadoras pensaram ao montar a narrativa. Fica clara a decisão de dar visibilidade aos artistas, produtores e cineastas que foram entrevistados. Dessa forma, é possível mostrar ao público que existe muita gente talentosa espalhada pelo Brasil, principalmente nas periferias.
“Esses artistas são incríveis! Acho que a ideia de que não ter muitos recursos não precisa ser um impedimento para você criar sua arte, e que também existe muita história pra ser contada, coisas próprias da nossa cultura que as pessoas têm vontade de assistir nela”, explicou Letícia.
A fala da colega de trabalho é complementada por Isabela. Para ela, o filme tem como objetivo contar a história dessas pessoas na intenção de que o espectador consiga se identificar e se sentir inspirado a fazer o mesmo. “É possível fazer cinema a partir das nossas ferramentas. Tanto que a gente fez esse documentário sem nenhum investimento. Tivemos várias dificuldades, mas conseguimos concluir. Então serve para mostrar que o audiovisual precisa de investimento.”
“A gente fez um filme sem investimento nenhum e chegamos na mostra de cinema, só que vários cineastas lá também estavam fazendo assim. 60 mil, 80 mil. E eu acho que é justo que todos tenham a mesma oportunidade. Tem a cena do Lincoln Péricles falando que gravava utilizando cano de PVC. Então tem que mostrar realmente como as pessoas estão se virando, e que isso sirva de lição para que haja investimento”, completou.
Afinal, é inegável a grande quantidade de profissionais competentes e talentosos que existem no país. Não à toa, há uma porção de histórias que muitas vezes nem chega ao imaginário do público, mas que precisam ser contadas. E essas histórias só serão contatas, se existir apoio, financiamento e referências para servirem de inspiração.
“Na mostra de Tiradentes, por exemplo, eu estava lá e uma pessoa me abordou falando: ‘caramba! Eu vi a Ponte do Socorro e essa é minha casa’. Então, eu espero que tenham mais histórias sobre a periferia. Obras como ‘Cidade de Deus’ são icônicas, importantíssimas, mas a gente também quer histórias sobre sonhar e viver uma vida de qualidade. Eu acho que têm várias opções e o audiovisual nos permite ir para diversos campos”, finalizou Isabela.
Assista ao documentário “Da Ponte pra Cá” na íntegra:
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