CRÍTICA I Ainda Estou Aqui é um retrato da luta pela memória e resistência
Walter Salles nos entrega, com “Ainda Estou Aqui”, uma reflexão densa e necessária sobre as cicatrizes deixadas pela ditadura militar no Brasil e a busca incansável por justiça.
Adaptado do livro homônimo e autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva (“Feliz Ano Velho”), o longa se destaca não apenas por seu conteúdo emocionalmente potente, mas também por sua relevância histórica. Aclamado em sua estreia no Festival de Veneza 2024, “Ainda Estou Aqui” foi escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar 2025, na categoria de Melhor Filme Internacional, reforçando sua importância tanto no cenário nacional quanto no internacional.
Mais do que um simples longa, “Ainda Estou Aqui” vai além ao se consolidar como uma das produções mais marcantes do ano. Sua narrativa oferece um olhar profundamente humano sobre um dos períodos mais dolorosos da história recente do Brasil, tornando-se uma obra que ressoa intensamente com as feridas ainda abertas na sociedade.
Ainda Estou Aqui I Sony Pictures Entertainment
A trama acompanha Eunice Paiva (Fernanda Torres/Fernanda Montenegro), uma mulher que se torna ativista após a captura de seu marido, Rubens (Selton Mello), pelo regime militar, em 1971. Esse evento traumático a imerge em uma luta pela memória e pela verdade, enquanto busca entender o destino de Rubens e lida com o impacto emocional em si e em seus filhos.
Sob a direção sensível de Walter Salles (“Central do Brasil”), o filme não se limita a uma representação crua e direta da brutalidade do regime militar. Salles opta por um enfoque mais introspectivo, ao explorar o sofrimento interno de Eunice e as consequências silenciosas, mas devastadoras, da repressão. A dor psicológica e o luto incerto da personagem são apresentados de forma sutil e angustiante, criando uma narrativa que mescla memória e realidade de maneira a transcender a individualidade, tocando em questões universais.
A atuação de Fernanda Torres (“Terra Estrangeira”) é o coração do longa. Ela incorpora uma Eunice forte, mas, ao mesmo tempo, vulnerável, uma mulher que carrega a dor da perda e da incerteza, mas que transforma esse sofrimento em resistência. Já Fernanda Montenegro (“A Vida Invisível”), em uma participação breve, mas impactante, dá vida à versão mais velha de Eunice, encerrando o ciclo da personagem com a profundidade e a sensibilidade, que só uma atriz de seu calibre poderia trazer.
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Além das atuações memoráveis, o longa também se destaca tecnicamente. A fotografia, de Adrian Teijido (“Medida Provisória”), recria com precisão a atmosfera dos anos 70 no Rio de Janeiro, equilibrando a nostalgia de um período que se perde e a opressão do contexto político. A paleta de cores escolhida, junto com a estética visual, reforça essa dualidade entre os momentos alegres que antecedem a tragédia e o ambiente sufocante da ditadura. O uso de material de arquivo e de noticiários da época, entremeados à narrativa, conecta a ficção à realidade histórica de maneira autêntica e eficaz, lembrando o espectador da importância de manter viva a memória coletiva.
A reconstituição de cenários também merece destaque. Sob a direção de arte de Carlos Conti (“Diários de Motocicleta”), os espaços recriados transportam o espectador para o clima de constante vigilância e incerteza que predominava na época. O figurino, assinado por Claudia Kopke (“Tropa de Elite”), complementa essa ambientação, sendo fiel à moda e aos costumes das décadas retratadas.
A transição entre os anos 70 e 90, que marca diferentes fases da vida de Eunice, é conduzida com fluidez e precisão, permitindo ao filme explorar a evolução da luta não só de Eunice, mas também de seu filho, Marcelo Rubens Paiva (Antônio Saboia). Marcelo se torna uma figura fundamental na discussão sobre a “Lei dos Desaparecidos”, sancionada por Fernando Henrique Cardoso nos anos 90, o que adiciona uma camada extra de profundidade ao enredo.
Ainda Estou Aqui I Sony Pictures Entertainment
O desfecho é comovente e profundamente simbólico. Salles opta por um final que não apela para o sensacionalismo ou para cenas de violência explícita. Em vez disso, o diretor foca na intimidade emocional de Eunice, lembrando o público de que o impacto da repressão vai além do sofrimento físico — ele permeia gerações e deixa cicatrizes que nunca se fecham completamente. A escolha de encerrar a narrativa com Fernanda Montenegro em uma atuação silenciosa, mas arrebatadora, reafirma a mensagem central da obra: a memória e a resistência são armas poderosas contra o esquecimento.
Em última análise, “Ainda Estou Aqui” é um filme que vai além de sua função como uma biografia ou um relato histórico. Ele se apresenta como um retrato pungente de um país que ainda luta para superar as sombras do seu passado. Walter Salles, com sua direção delicada e precisa, oferece ao público uma experiência cinematográfica visceral e emocionalmente envolvente, onde a dor pessoal se entrelaça com a reflexão política.
Ainda Estou Aqui I Sony Pictures Entertainment
À medida que a temporada de premiações se desenrola, “Ainda Estou Aqui” se posiciona como um forte candidato ao Oscar de Melhor Filme Internacional, e, quem sabe, poderá se consolidar como um marco no cinema brasileiro, tal como “Central do Brasil” foi, em 1998.
Mas, independentemente de prêmios, a obra já é uma conquista significativa, ao oferecer um espaço para a reflexão sobre a importância da memória e da resistência em tempos de repressão.
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