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CRÍTICA | Anora atualiza Cinderela e nos derruba no processo

Vencedor da palma de ouro no Festival de Cannes, Anora mistura comédia e drama para fazer um retrato honesto do mundo atual

Escrito pelos Irmãos Grimm, o conto da “Gata Borralheira”, ou “Cinderela” como é mais popularmente conhecido, apresenta a seguinte frase no momento que Cinderela dança com o príncipe: “Tanto tempo vivendo em meio às cinzas, agora ela estava vivendo em esplendor e felicidade”.

Dirigido por Sean Baker, Anora pode ser considerado uma atualização desta história secular. Na produção, a princesa é uma gentil e carismática stripper chamada Ani, Mikey Madison, que se casa impulsivamente com um jovem oligarca russo chamado Ivan, Mark Eidelshtein, tendo a oportunidade de finalmente alcançar uma vida de luxo e glamour que sempre quis.

Inicialmente se assemelhando a outras produções como Podres de Ricos (2018) e mais especificamente Uma Linda Mulher (1990), Anora se mostra bem maior do que ambos estas produções por conta de uma junção de fatores, que inclusive fizeram o filme vencer a palma de ouro do festival de Cannes 2024.

O primeiro fator é elenco. Mikey Madison é a melhor escolha possível para o papel de Anora, uma mulher leve, engraçada e ao mesmo tempo extremamente decidida e confiante. Ao longo de duas horas presenciamos todo um espectro de emoções que variam desde a alegria até às lágrimas. É um papel que não tem medo de demonstrar suas inúmeras qualidades, do mesmo modo que suas falhas. Junto com sua protagonista, um elenco secundário compõem esta farsa, principalmente no segundo ato do filme quando o filme deixa de ser uma comédia romântica e se torna um filme de absurdos que abraça o caos de uma maneira que poucos filmes apresentam coragem.

O segundo fator é o roteiro e a direção de Sean Baker. O que poderia ser um romance que seria esquecido após um tempo, é na verdade um misto de comédia, absurdos e drama. Por bem ou por mal, Baker pula corda com isto. No primeiro momento rimos da situação, em seguida, após a catarse, refletimos sobre o porque rimos daquela situação, algo constante em toda a produção.

O terceiro e principal fator é a veracidade de seu roteiro. Enquanto comédias românticas como Uma Linda Mulher (1990) constroem um universo fantástico que testa a crença do espectador, em Anora nós sentimos que é real, sentimos empatia com Ani, queremos que ela alcance seu sonho, não o de amor pois em nenhum momento acreditamos que ela realmente ama Ivan, especificamente porque o personagem é construído de maneira tão imatura que nunca teria futuro com alguém complexo quanto Ani, mas o sonho de ser algo mais dentro da vida, algo que todos nós sonhamos alguma vez na vida.

Anora

Pôster Oficial de “Anora”- Divulgação da Focus Pictures

A trilha sonora composta de músicas como All The Things That She Said de t.A.T.u, a cinematografia que constrói um universo fantástico e lúdico para Ani, que fica cada vez mais real na medida que o filme avança, piadas que variam do sorriso de canto de boca até chorar de rir, trazendo uma sensação de conforto para o espectador, para ao final quebrar todo este sonho anteriormente apresentado.

A realidade não é um conto de fadas, isto que Baker quer nos lembrar com um último ato que nos deixa sem resposta. Após uma jornada diretamente tirada de um filme dos anos 80, somos lembrados de como ao final do dia, pessoas cometem erros e não arcam com eles, de como somos obrigados a certos papéis por conta de nossas escolhas, de como é difícil encontrar apoio em um mundo cada vez mais frio, de como às vezes a gente só precisa de um abraço.

Anora é um filme corajoso, fugindo de clichês românticos ultrapassados, trazendo para a realidade e tomando decisões ousadas a cada momento. Focando todo o primeiro ato no relacionamento de Anora e Ivan, para o homem desaparecer pela totalidade do segundo ato, deixando Ani e o espectador questionando esta ausência, enquanto a realidade idílica construída anteriormente, é derrubada sem piedade por meio de um absurdo atrás do outro, demonstrando que no final, por mais que Anora e o próprio espectador desejem muito, na grande maioria das vezes, a Cinderela não alcança seu final feliz.

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