CRÍTICA| Cem anos de Solidão é mágico do começo ao fim
Baseado no livro de Gabriel Garcia Marquez, Cem Anos de Solidão é uma das melhores e mais bem trabalhadas séries do serviço de streaming
Gabriel Garcia Marquez escreveu Cem Anos de Solidão como o seu magnum opus, após trabalhar seus temas, personagens e o próprio vilarejo de Macondo em livros anteriores como Ninguém Escreve ao Coronel e Os Funerais de Mamãe Grande, Marquez lançou o livro em 1967, tornando-o uma referência até os dias de hoje.
Ao retratar a ascensão e decadência da família Buendía, e sua extensão no povoado de Macondo, o livro contém de tudo: cenas bélissimas, guerra, amor, conflito, um erotismo saliente, personagens marcantes, discussões sobre religião, política e humanidade, sempre com muito humor e ironia para assim construir uma alegoria da América Latina.
Cem Anos de Solidão é visto atualmente como um dos melhores livros daa literatura mundial, assim, não é de agora que diversos diretores tentam adapta-lo para o cinema como o italiano Francesco Rosi, o mexicano Anthony Quinn e até mesmo Francis Ford Coppola, porém, Garcia Marquez, além de autor, um professor de roteiro, construiu o livro de forma tão hermética que não seria possível adaptar tal obra em um filme de 2 horas, nem mesmo em um de 4, sem perder tudo o que o fez especial para inicio de conversa.
Gabriel Garcia Marquez escreveu Cem Anos de Solidão inspirado nas histórias que sua mãe e avó contavam para ele em sua infância, nelas, sempre existiam acontecimentos fantásticos que eram vistos como naturais, assim, abrindo caminho para o estilo do realismo mágico que Cem Anos de Solidão representa tão bem: acontecimentos fantásticos são tratados como comuns e acontecimentos comuns são vistos como fantásticos.
Gabriel Garcia Marquez, faleceu em 2014, o serviço de vídeo on demand ainda estava em seu início, a NETFLIX era um dos poucos streamings vigentes e mesmo assim, ainda estava no começo com produções autorais, tendo acabado de lançar Orange Is The New Black e House Of Cards, assim, Gabo não viu o monstro que estava nascendo, porém, apesar de não ter visto o seu magnum opus ser adaptado, o escritor viu adaptações de outras de suas obras.
Claudio Cataño em cena de Cem Anos de Solidão– Divulgação NETFLIX
Amor nos Tempos do Cólera teve uma adaptação em 2007 com grandes nomes como Javier Bardem, porém, foi um fracasso de público e crítica. No Brasil, Ruy Guerra adaptou em 1983 a história de Cândida Erendira, com um roteiro do próprio Marquez, e adaptou O Veneno da Madrugada em 2006, porém, estas e outras adaptações, jamais conseguiram capturar todas as nuances da literatura de Marquez.
Com a permissão dos descendentes de Garcia Marquez, e seguindo algumas exigências específicas como a gravação ser realizada na Colômbia, ter um elenco colombiano, e a série ser completamente falada em espanhol, a NETFLIX assumiu as rédeas e decidiu adaptar Cem Anos de Solidão.
Guiada por um narrador onisciente, Cem anos de Solidão é construída de modo fiel, seguindo beats e permitindo que os fãs do livro se maravilhem não somente com uma arte primorosa, principalmente em seus figurinos que representam tão perfeitamente a essência de cada personagem, cito como principal exemplo a dicotomia rosa de Amaranta com o azul de Rebeca; a construção física do cenário de Macondo que é completada com uma fotografia que se baseia em diversos planos sequências, cito dois como exemplo: o primeiro plano sequência em que conhecemos Macondo, e o plano sequência de Arcádio fugindo do exército enquanto o vilarejo é destruído.
Cem Anos de Solidão é a série mais cara que a NETFLIX já realizou na América Latina. Para construir o realismo fantástico, foram usados diversas trucagens técnicas que permitiriam isso, ao mesmo tempo que conseguimos enxergar “aonde o dinheiro foi investido”, a série é extremamente pé no chão dentro de seu próprio universo fantástico, algo tão gritante no livro de Marquez, a cena final da morte de José Arcádio Buendia é uma obra de arte, porém, a série só se mostrou tão eficiente por meio de um elenco meticulosamente escalado.
Eu poderia explorar cada um dos atores de Cem Anos de Solidão e explicar como foi uma escolha perfeita para o papel, porém, este texto ficaria tão longo quanto os pergaminhos de Melquíades, então basearei meu argumento em somente dois: Laura Sofía Grueso, Akima, como Rebeca Buendía e Claudio Cataño como o Coronel Aureliano Buendía.
Laura Sofía Grueso ‘Akima’ em cena de Cem Anos de Solidão– Divulgação Netflix
Rebeca Buendía é uma das personagens mais queridas do livro e é interpretada com muita graça pela modelo Akima, em seu primeiro papel dentro do campo audiovisual. Ao enxergarmos a atriz no meio do canteiro, comendo terra para esconder sua dor, seu contato com a masturbação que fazia a casa inteira tremer, sua rivalidade com Amaranta, ou uma mordida de lábio ao enxergar pela primeira vez José Arcádio Buendia, a atriz consegue nos transportar para o seu universo particular de uma maneira que poucas conseguem.
Apesar de vários destaques, a piece de resistance da primeira parte de Cem Anos de Solidão, tanto no livro quanto na série, é o mito, a lenda, o homem que é o Coronel Aureliano Buendía. Seu legado ultrapassa Cem Anos de Solidão a ponto de Gabriel Garcia Marquez citá-lo em diversos outros livros como ponto de referência, mais especificamente: Ninguém Escreve ao Coronel.
Não existem palavras para descrever a potência de Claudio Cataño no papel, no livro, o personagem é enxergado como alguém que carrega a solidão em seus olhos cinzas, e isto é exatamente o que ocorre em sua atuação, durante todas as suas transformações ao longo da série, desde um homem esguio e solitário, sua relação com o anjo que foi Remédios Moscote e principalmente a sua transformação no mítico Coronel que persiste e influencia toda Macondo, ditando inclusive o começo do seu fim.
Todo este cenário mágico e complexo foi cuidadosamente orquestrado e acompanhado por uma trilha sonora extremamente eficaz, na medida que a NETFLIX encerra com um gancho, como 90% de suas produções, somente nos resta esperar pela segunda parte desta odisseia latino americana, uma continuação que, na minha opinião como amante assíduo do livro, é onde se encontra os melhores momentos de Cem Anos de Solidão e onde o realismo mágico, cuidadosamente trabalhado nesta primeira partem, realmente é despertado.
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