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CRÍTICA | Cidade de Deus: A Luta Não Para é um prato cheio para os críticos

Nova série da HBO, Cidade de Deus: A Luta Não Para (2024 – ) segue causando polêmica ao final de sua 1ª temporada


Sempre que a continuação de alguma obra cinematográfica aclamada é anunciada, o público automaticamente se divide em duas correntes: entusiastas que, por serem fãs da obra original, aguardam ansiosamente a expansão de tal universo; e conservadores, que de alguma forma entendem que a nova produção poderá estragar ou até mesmo apagar seu tão querido filme de estimação. No caso da série “Cidade de Deus: A Luta Não Para”, não foi diferente.

A série, nova produção da HBO, que lançou o último de seus 6 episódios neste domingo (29), traz de volta os mesmos personagens do grande clássico da Retomada no cinema brasileiro, “Cidade de Deus” (2022), do diretor Fernando Meirelles. O filme é adaptação do livro homônimo, escrito por Paulo Lins e lançado em 1997 e tornou-se um marco dentro do audiovisual brasileiro, alcançando grande sucesso de público e crítica e acumulando prêmios, bilheterias e reproduções mundo afora, se consolidando como um dos filmes brasileiros mais conhecidos internacionalmente.

"Cidade de Deus: A Luta Não Para" | HBO

“Cidade de Deus: A Luta Não Para” | HBO

Tecnicamente falando, são diversos os aspectos que fizeram o filme atingir o status de obra-prima, como a montagem brilhante de Daniel Rezende, a utilização de atores não-profissionais no elenco, em sua maioria residentes da comunidade retratada, e a polêmica porém eficaz preparação de elenco de Fátima Toledo. Temos ainda a premiada parceria entre a lindíssima direção de fotografia de César Charlone, costurada pela sempre sensível e fortemente presente direção geral de Fernando Meirelles, que também alcançou fama internacional após o lançamento do filme e dirigiu alguns longas estrangeiros posteriormente.

Mas, técnicas à parte, o verdadeiro sucesso de “Cidade de Deus” só pode ser explicado em sua plenitude a partir de pessoas que viveram o frenesi que se seguiu após o seu lançamento nos cinemas. A narrativa frenética, as falas inundadas de gírias cariocas, as praias, as drogas, a violência extremada. O filme se tornou um clássico instantâneo, suas falas integram o imaginário popular até hoje e as reprises preenchem avidamente as grades da TV à cabo há 20 anos.

Parte deste sonoro sucesso entre o público se dá pela narrativa quase que exclusivamente focada na população favelada e de outras classes menos favorecidas da sociedade, construída a partir de uma adaptação fiel, no entanto fortemente gráfica, de seu livro homônimo. E esta é sem dúvida uma dualidade chave para entender a importância desta produção para o paradigma da linguagem no cinema brasileiro.

Isto porque, apesar do protagonismo dado à classe mais pobre representada no filme, a produção foi acusada de explorar a imagens desses corpos, em sua maioria negros, pobres e favelados, reforçando o estereótipo da população favelada enquanto perigosa e violenta e atrelando a história da Cidade de Deus (e do Rio de Janeiro) com uma inevitável corrupção de seus indivíduos e uma irrecuperável zona de guerra.

O sucesso financeiro que atingiu parte dos diretores e produtores do longa, mas excluiu grande parte do elenco amador morador da comunidade, também evidencia esta incoerência da produção.

Tal dualidade é representada metalinguísticamente pelo dilema enfrentado pelo personagem Buscapé (Alexandre Rodrigues) ao final do filme, com a decisão entre publicar a foto da corrupção da policial ou do traficante Zé Pequeno (Leandro Firmino) assassinado e ensanguentado.

Curioso justamente porque este é dos aspectos que demonstram a intenção do filme em retratar aqueles personagens de uma maneira diferente do que se via nos jornais, filmes e outras produções audiovisuais do início do século XXI. Apesar de acabar caindo justamente nos mesmos estereótipos que buscava desconstruir ao retratar a guerra entre as facções de maneira gráfica e visceral. 

Este também é um dos fatores que fez este produto atingir tantos públicos nacionais e internacionais, com as cenas de violência dando um forte status comercial para a produção, apesar de sua aclamada posição entre a crítica especializada mundo afora.

"Cidade de Deus: A Luta Não Para" | HBO

“Cidade de Deus: A Luta Não Para” | HBO

Neste aspecto, a série ressurge não para superar o filme original em seus aspectos técnicos brilhantes, mas buscando atualizar o debate em torno daquela população marginalizada e sobre o histórico das duas cidades envolvidas no enredo, a de Deus e a do Rio de Janeiro. E nesse aspecto, a nova produção da HBO acertou em cheio.

“Cidade de Deus: A Luta Não Para” se passa novamente na favela Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio de Janeiro, agora 20 anos depois dos acontecimentos do filme (o que seria início dos anos 2000 na narrativa, justamente a mesma época do lançamento do filme original). Muito respeitoso a linguagem do longa de 2002, a série não tem medo de explorar os mesmos personagens que deixamos para trás, pelo menos os que sobreviveram à guerra entre Zé Pequeno e Mané Galinha (Seu Jorge). 

Temos novamente a narração de Buscapé. Agora prezando pelo seu nome profissional, Wilson, o personagem desenvolveu sua carreira como fotógrafo jornalístico, mas é acusado por seus vizinhos da cidade de deus de explorar a violência e a imagem dos favelados para vender suas fotografias para os jornais hegemônicos da zona sul. 

O protagonista, que era símbolo de ingenuidade e da pureza adolescente no filme de 2002, agora funciona como uma metalinguagem às críticas recebidas pelo longa, possuindo a consciência da exploração que exerce sobre a imagem dos corpos retratados, mas engajado de mãos atadas ao sistema que lhe deu a oportunidade de melhorar sua condição financeira. 

Buscapé buscará, ao longo da trama, recolocar sua posição nesta indústria da guerra que move a cidade, utilizando de seu lugar de prestígio para fazer mais do que era possível 20 anos antes. E é exatamente isto que a série irá fazer como um todo, utilizar a visibilidade do filme para atualizar debates e corrigir certos posicionamentos, de maneira que não seria possível 20 anos antes.

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Muitos outros personagens presentes no filme (e seus atores originais) retornam para esta continuação, cada um sendo responsável por atualizar um aspecto do debate central que move a série: a vida nas comunidades cariocas e sua relação intrínseca com a violência e as disputas de poder do crime organizado  aparelhado no Estado do Rio de Janeiro. 

É o caso de Braddock (Thiago Martins), Berenice (Roberta Rodrigues), Barbantinho (Edson Oliveira), e Cinthia (Sabrina Rosa), personagens importantes e sobreviventes dos eventos dos anos 80, retornando agora com um novo contexto e importância narrativa. É a partir deles que a série contará os desdobramentos das disputas territoriais do poder paralelo nas favelas cariocas, adicionando importantes elementos da história da cidade dos últimos 30 anos e criando uma alegoria bem direta sobre a presença do tráfico e milícia dentro do Estado.

Outros novos personagens também surgem nesta mesma pegada, explorando e aprofundando de maneira acertada a relação do universo da série com seu histórico narrativo. Personagens como Delano (Dhonata Augusto) e MC Leka (Luellem de Castro) são ótimos exemplos do aprofundamento que é dado na série sobre a relação entre a população da favela e a disputa de poder entre o crime organizado, a polícia e o Estado.

O roteiro da série, não mais adaptado do livro, agora faz este movimento quase que durante toda sua duração, resgatando elementos narrativos como a pobreza, a falta de educação e a falta de acesso à cidade e atualizando para perspectivas atuais, buscando se distanciar da estereotipagem comumente associada às essas populações e traçar um panorama mais profundo do grave e histórico problema de administração pública da cidade maravilhosa, totalmente aparelhada e governada pelo crime organizado.

É bem verdade que a série também se utiliza da violência para construir sua narrativa, mas aqui vemos esta retratação não como uma ferramenta mercadológica, mas como um argumento de denúncia para a reflexão a respeito da trágica história do Rio de Janeiro. A cidade carioca, que já foi capital do país, vive uma guerra civil de disputas territoriais entre tráfico, milícias e Estado há, pelo menos, 30 anos. 

Seria muita inocência acreditar que tal estado permanente de guerra acontece somente por que os traficantes e moradores das favelas são “maus”. Assim como foi inocência (na verdade, muita má fé) de parte da mídia hegemônica apoiar a crescente das milícias (ou policiais mineiras, como eram conhecidas) no início dos anos 2000. O problema da violência urbana carioca tem início muitos anos antes das facções tomarem conta das favelas e anda de mãos dadas com integrantes do crime organizado que dominam o Estado. É justamente sobre isso que “Cidade de Deus” quer falar, tanto o livro, quanto o filme e, agora, a série.

Neste aspecto, a série triunfa em atualizar o debate de maneira direta e, muitas vezes, até poética. Se o longa de 2002 busca retratar, horas de maneira leve e jocosa, outras horas de maneira visceral e violenta, os efeitos da marginalização dos corpos promovido pelo Estado, agora, a série dá enfoque nos aparelhamentos que cercam e financiam as disputas de poder ocorridas nas favelas da cidade. 

A violência, a pobreza, a miséria e a falta de acesso retornam como temas. Mas também, o tráfico de armas, silenciamento de testemunhas, conluio e improbidade jurídica são alguns dos temas que surgem como motivadores e articuladores desta situação complexa de uma das maiores cidades do Brasil. Neste aspecto, a série, assim como o filme, acerta em cheio ao deixar claro quem paga o pato de maneira brutal pelo descaso dos poderosos com a cidade: a população, em sua maioria negra, pobre e, principalmente, favelada.

É bem verdade que esta atualização no debate certamente incidirá na parte mais conservadora dos espectadores, que amavam o filme justamente pelos motivos errados, fetichizando a violência e glorificando a política de Estado e a polícia que mata pobre favelado todos os dias. E a série parece saber deste golpe que dará no debate para com esta parte do público, construindo uma narrativa que aponta para esse grafismo violento até o final do episódio 5, mas passando por uma certa reviravolta de perspectiva para o encerramento da temporada.

A série é tema de polêmica desde seu anúncio e continuará sendo agora até o lançamento da segunda temporada. Não preciso nem dizer que os conservadores, que agora se tornarão detratores da série, automaticamente se tornarão especialistas na linguagem audiovisual e utilizarão da brilhante excelência técnica do filme para apagar os triunfos importantes trazidos pela produção da série.

É bem verdade que aquele primor técnico será difícil de ser alcançado e não retorna por completo aqui (especialmente a montagem, talvez uma das melhores de toda a história do cinema). Mas, além de possuir ótima execução técnica, a série acerta justamente ao optar por um outro caminho, nem ao menos se propondo a repetir as mesmas estratégias de produção do filme original, mas respeitando e referenciando a produção de 2002 ao longo de toda a temporada.

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“Cidade de Deus: A Luta Não Para” | HBO

É essa decisão acertada que ditará o tom e ritmo de “Cidade de Deus: A Luta Não Para”, que não se propõe em superar o filme original, mas sim aproveitar sua visibilidade nacional e internacional para atualizar, corrigir e propor novos debates sobre a cidade e as comunidades cariocas.

Assistir essas produções, mesmo com temáticas e cenas fortes e diretas, deveria ser uma recomendação básica não somente para todos os amantes brasileiros de cinema, mas para todos os cidadãos que buscam entender um pouco mais da história e influência do crime organizado no cotidiano carioca e na política de Estado aplicada por aqui.

Enquanto carioca e morador do subúrbio, sempre me senti especialmente sensibilizado pelo filme e acredito que a série seja uma atualização importante acerca de seu debate. O episódio final aponta para acontecimentos históricos trágicos e importantes do Rio de Janeiro e sigo ansioso para acompanhar a forma como serão abordados tais episódios.

E quanto às reclamações dos conservadores desde o anúncio da série e agora com o desenrolar de seu enredo, só reforça a  urgência em abordar de maneira frontal as reflexões trazidas na narrativa. O audiovisual é uma ferramenta fundamental na construção do imaginário político popular, e é preciso urgentemente disputar o histórico da cidade que é berço do samba, mas, também, das milícias, justamente para que seja possível vislumbrar alternativas para garantir o seu futuro. 

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