Crítica | Curiosa
Crítica do filme francês “Curiosa” (2019), da diretora Lou Jeunet.
Como não amar os franceses? Como não amar o amor-romântico-libertino desde Marquês de Sade?
O sociólogo Zygmunt Bauman escreveu em seu livro “Amor líquido”:
“O amor pode ser, e frequentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento.”
Os libertinos são mais felizes, não pelas suas práticas sexuais, mas porque conseguem compreender melhor as nuances do amor. Os moralistas são infelizes por não arriscar, por não ir contra as regras morais impostas pela sociedade.
Já cantava Vinicius de Moraes “é melhor se sofrer junto, do que ser feliz sozinho”, e esta é a escolha de Marie, Pierre e seus cônjuges em “Curiosa”. O sofrer está intimamente ligado a ideia de amor. Os franceses comparam o amor prático à “La petite mort”, “a pequena morte”.
Em “Curiosa”, de Lou Jeunet, nem todos os personagens amam e são amados. Alguns apenas desfrutam da companhia do ser amado, sem a expectativa, sem o desejo da retribuição… vivendo apenas para satisfazer a vontade de quem se ama. E este é o amor mais puro que existe: amar sem esperar nada em troca. Henri Régnier, marido de Marie, se desfaz da própria essência, do seu próprio conforto, do próprio bem estar, do “moralmente aceito”. Henri faz por necessidade, ele sente necessidade de Marie. E, talvez, pelo peso na consciência? Por ter se aproveitado da ausência do amigo (Pierre Louys) para oferecer ao pai de Marie, um dote, sem consultar as suas pretensões e sem citar os sentimentos de Pierre, como havia sido combinado.
Se eu pudesse descrever Henri em um poema, seria “O Haver”, de Vinicius de Moraes:
“[…]
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história…
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
[…]
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
[…]
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada…
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.”
Essas coisas que as paixões transformam em obsessão, em “Curiosa”, não vemos o lado racional, só o emocional. O desejo interfere na própria dignidade, como não imaginar que, apesar de tudo, o importante é não perder quem se ama?
Quem nunca parou para refletir sobre a letra da canção “Sinônimos”, de César Augusto, Cláudio Jair De Oliveira e Paulo Sérgio, conhecida nas vozes de Zé Ramalho e Chitãozinho e Xororó?:
“Quanto o tempo o coração leva pra saber
Que o sinônimo de amar é sofrer?
[…]
O amor é feito de paixões
E quando perde a razão
Não sabe quem vai machucar
[…]
Sinônimo de amor, é amar
[…]
E quantos segredos traz o coração de uma mulher?
Como é triste a tristeza mendigando um sorriso
Um cego procurando a luz na imensidão do paraíso
Quem tem amor na vida, tem sorte
Quem na fraqueza sabe ser bem mais forte
Ninguém sabe dizer onde a felicidade está.”
Não é difícil encontrar na cultura e, principalmente, no cinema francês, casos de amor como na película “Curiosa”. Os franceses carregam no sangue a frase de Marquês de Sade “Antes ser um homem da sociedade, sou-o da natureza”. E não é errado. Se todos dão consentimento, não há o que se julgar. Não deve ser apontado o dedo sobre aquilo que não se conhece, e, mais uma vez cito Sade: “Nunca devemos admitir como causa daquilo que não compreendemos algo que ainda entendemos menos”. Só quem vive um amor, ou paixões desse tipo, compreende que, todos os julgamentos sobre traição e falta de caráter são, simplesmente, desnecessários. Ninguém deixa de amar pela traição, segundo Nelson Rodrigues, algumas paixões são despertadas através da traição, como na crônica “Casal de Três”, de A Vida Como Ela É. E esse tipo de traição, nem deve serconsiderado como tal. É um romance lindo de se viver intensamente. Seja com duas mulheres, como é com Marie e sua irmã, onde ambas se unem para satisfazer a vontade de Pierre, dando-lhes prazer através das fotografias, ou como Henri e Pierre que, apesar de não fazer um ménage à trois, se aceitam.
Há sadomasoquismo quando Henri se humilha, quando ele se ajoelha, quando ele implora o amor, mendigando o resto de afeto que possa ter restado da transa de Marie com o amante… há sadomasoquismo também quando Henri marca o encontro entre esposa (Marie) com o amante (Pierre) para apresentar-lhe “o tigre”, o fruto dessa traição. Há também quando Pierre, o amante, em forma de agradecimento, acata o pedido de Henri: deixa-o ouvir o sexo, por trás das paredes finas — os gritos, os gemidos, o arrastado da cama, as batidas das mãos na parede, os suspiros aliviados. No quarto ao lado, com ouvido colado na parede, Henri com o grito contido, as lágrimas inundando o quarto vazio. Vazio de presença e de sentimentos recíprocos… Henri sabe que não possui o amor, nem o tesão de Marie. Mas ele se apega aos suspiros de amor que ouve de Marie para o amante Pierre, e, se contenta, em meio ao sofrimento. Sim, porque Henri tem pleno conhecimento de que, este é o único momento onde ele irá ouvir a sua voz macia, a sua voz serenizada, trêmula de libido, sem que seja por mera obrigação, ou conveniência em estar cumprindo seu papel de esposa. Porque toda a razão de existir o fingimento acabou quando Marie afirmou que não o ama e nunca o amaria.
Assim como na canção “Tá Combinado”, de Caetano Veloso:
“Então tá combinado, é quase nada
É tudo somente sexo e amizade
Não tem nenhum engano, nem mistério
É tudo só brincadeira e verdade
Podemos ver o mundo juntos
Sermos dois e sermos muitos
Nos sabermos sós sem estarmos sós
Abrirmos a cabeça
Para que afinal floresça
O mais que humano em nós
Então tá tudo dito e é tão bonito
E eu acredito num claro futuro
De música, ternura e aventura
Pro equilibrista em cima do muro
Mas e se o amor pra nós chegar
De nós, de algum lugar
Com todo o seu tenebroso esplendor?
Mas e se o amor já está
Se há muito tempo que chegou
E só nos enganou?
Então não fale nada, apague a estrada
Que seu caminhar já desenhou
Porque toda razão, toda palavra
Vale nada quando chega o amor”
Mas quem há de negar que este relacionamento que agora foi firmado através da verdade não é superior ou igual ao do relacionamento com o Pierre? “E quem há de negar que esta lhe é superior?”, como cantou Caetano Veloso. Pois, Marie demonstra afeto por Henri, diz-lhe de joelhos que a opinião de Henri é muito importante. Henri e Marie continuam com a vida de casados, convivem com a mesma delicadeza, passou o tempo das brigas.
Como na canção “Todo Sentimento”, de Chico Buarque e Cristóvão Bastos:
“Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei, como encantado
Ao lado teu”.
Nota: 5/5
Por, Paula Priscila de Melo Barbosa.
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