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CRÍTICA | Golpe de Sorte em Paris é um filme do século passado

Em Golpe de Sorte em Paris, o polêmico diretor Woody Allen retorna com mais do mesmo para quem gosta de desligar o cérebro

É praticamente impossível falar sobre o filme Golpe de Sorte em Paris, mais novo longa do renomado diretor Woody Allen (89), sem mencionar o histórico, no mínimo, controverso do diretor e roteirista. Entre diferentes acusações de assédios e abusos sexuais, a maioria vinda  de membros de sua própria família, talvez o episódio mais polêmico (e de maior repercussão midiática) seja o casamento entre Allen e Soon-Yi Previn em 1992, que dura até os dias de hoje. Além da grande diferença de idade entre os dois, Soon-Yi também é filha adotiva de Mia Farrow, ex-esposa de Woody Allen, e irmã adotiva de Dylan Farrow, supostamente abusada por Allen também em 92 e principal acusadora do diretor.

"Golpe de Sorte em Paris" | O² Filmes

“Golpe de Sorte em Paris” | O² Filmes

Partindo da premissa de que é impossível analisar qualquer obra sem contextualizar a vida de seus autores, o estigma de sua conturbada relação familiar e graves acusações criminais sempre precederá as impressões de seus filmes para espectadores mais atentos. Esta, como alguns outros elementos que serão explorados mais à frente neste texto, será para sempre mais uma marca registrada na interpretação dos filmes de Woody Allen, que segue, do auge de seus 88 anos, a saga incansável de lançar praticamente um filme por ano.

Falando em marcas registradas, além da já citada, este filme carrega todos os outros elementos mais característicos do diretor americano, que começou a ganhar destaque na Nova Hollywood dos anos 70. Introdução em cartelas e ligh jazz de trilha sonora, o personagem escritor com tendências de mania e obsessão, a cidade como personagem (nesse caso, Paris) e, principalmente, o tom leve e, ao mesmo tempo, ácido com que o diretor desenvolve suas narrativas.

Aprofundando mais no audiovisual em si, vale muito destacar o trabalho simples e primoroso de cada um dos setores quee constroem, de maneira sólida, direta e divertida, um longa-metragem nos moldes mais clássicos do movimento que ficou conhecido como Nova Hollywood. O filme funciona quase como uma fábula sobre sorte e azar, envolvendo seus poucos personagens numa trama de crime e traição sem abrir mão da comicidade e ritmo de comédia romântica.

A história gira em torno de Fanny (Lou de Laâge), uma jovem francesa que reencontra, por acaso, andando na rua, Alain (Niels Schneider), um antigo admirador secreto dos tempos de criança. A trama ganha proporções mais complexas na medida em que Fanny começa a se relacionar com Alain, mesmo sendo casada com o rico, controlador e misterioso Jean (Melvi Poupad), que irá até as últimas consequências para manter o status de sua “noiva-troféu”.

O roteiro busca reforçar a dúvida da protagonista diante dos dois pretendentes, que se opõem de maneira vertical em todos os aspectos. Alain é um escritor, apaixonado pela vida, pelo acaso e por Fanny. Já o empresário Jean é um ricaço frio parisiense, que faz mistério sobre a real natureza de sua riqueza e possui um histórico de sociedades suspeito.

"Golpe de Sorte em Paris" | O² Filmes

“Golpe de Sorte em Paris” | O² Filmes

 Alain acredita que reencontrou Fanny na rua por pura sorte. Já Jean tem certeza que constrói sua própria sorte e que seu casamento com Fanny é advento de seus próprios méritos.


Além das características básicas de cada personagem, a direção também opta por uma linda alternância de cenários e cores, que se associam diretamente aos sentimentos de Fanny ao se relacionar com cada um deles.

Enquanto Alain é apresentado com cores quentes, normalmente ao ar livre ou em lugares pequenos e aconchegantes, Jean reforça o estereótipo do ricaço frio com cores azuladas, cenários internos grandes e opressores e comportamento controlador. Os diversos funcionários que servem Jean também reforçam seu comportamento narcisista ao serem retratados sempre parcialmente nos planos, nunca completamente incluídos na imagem e sempre distanciados de seus patrões.

A fotografia capta de maneira sublime esta oposição, utilizando a cidade de Paris de maneira magistral (e fazendo questão de fugir de suas representações mais estereotipadas).  A adição do jazz como trilha sonora em associação à trama e fotografia consolidam o clima divertido do longa, que funciona como uma longa, ácida e agradável piada, sendo sua triunfal punchline reservada ao final do filme.

A mudança de ritmo no meio do filme e exploração surpreendente de algumas personagens também são elementos que ajudam a distanciar a obra dos enlatados de comédia hollywoodianos da atualidade, mostrando que é possível fazer um filme que seja ao mesmo tempo tradicional, divertido e inventivo, com uma trama deliciosa de acompanhar, aliando simplicidade e criatividade.

É comum, ao criticar filmes blockbuster de caráter mais “pipoca”, receber comentários como o seguinte:

“Eu vejo o filme para ‘desligar o cérebro’ e embarcar na história.”

Criando um estigma de que filmes ditos cults teriam necessariamente que  possuir uma narrativa mais complexa, com alto grau de dificuldade para interpretação. E pior, implicando que filmes ditos “pipocas” teriam que incluir narrativas simplistas e lineares, excluindo possíveis complexidades de seus personagens.

Neste caso, Golpe de Sorte em Paris é um prato cheio para refutar essa lógica. O filme é construído tecnicamente de maneira primorosa, a narrativa é leve, engraçada e de fácil compreensão, dando de 10 a zero na grande maioria dos filmes atuais de comédia que mal conseguem arrancar uma cena com risadas de seus espectadores, como é o caso de filmes recentes como “Todos Menos Você” (2023) e “Que Horas Eu Te Pego?” (2023)

"Golpe de Sorte em Paris" | O² Filmes

“Golpe de Sorte em Paris” | O² Filmes

Por fim, o novo longa de Woody é, definitivamente, um filme do século passado, no bom e no mal sentido: Praticamente exclui questionamentos sociais além de uma breve oposição de classe entre os protagonistas, não abarca questionamentos sobre cibercultura, internet e novas tecnologias. Ou até mesmos questões de gênero, raciais, entre outras pautas latentes do século XXI. Não utiliza nenhum efeito de imagem inovador (o que não é um problema, na verdade) e carrega a maioria de elementos e marcas registradas que seu polêmico diretor carrega em todos os seus numerosos filmes desde os anos 70. 

Mas também, com protagonismo da fotografia e trilha sonora, o longa trabalha de maneira sublime e criativa as diferentes ferramentas que constroem uma narrativa audiovisual, utilizando os recursos de maneira muito sensível ao conteúdo, fugindo de clichês do gênero e personagens unidimensionais. Com originalidade e privilegiando decisões artísticas às mercadológicas. A decupagem e direção seguem um modelo clássico popular do século XX e privilegiam a criação e sensibilidade artística à exploração dos aparatos técnicos disponíveis. Uma receita batida de outros tempos de Hollywood, mas que pode ser exatamente um pouco dos que os filmes atuais de comédia precisam.

Ao longo de sua longa carreira, Woody Allen acertou e errou inúmeras vezes ao produzir e reproduzir sua fórmula particular de criar filmes. Neste caso, trata-se de um acerto. Um bom e divertido filme de comédia, o primeiro do diretor em que a língua principal não é o inglês. Sua duração transcorre de maneira muito agradável e o final fornece uma espécie de satisfação irônica, como uma piada de um senhor de idade que, apesar dos pesares, segue produzindo ativamente e entregando obras com sua qualidade típica.

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