Crítica | Malcolm e Marie – Um retrato em preto e branco sobre amor, desprezo e egoísmo
Em 2019, a aclamada série de televisão Euphoria, escrita e dirigida por Sam Levinson, abriu uma porta para que o mundo pudesse vislumbrar o talento de Zendaya. Dois anos depois, a dupla se reúne com John David Washington para compor Malcolm e Marie. A nova produção da Netflix, isenta de cores, mostra que “nem tudo é preto no branco“.
Sobrecarregado de emoções, a primeira coisa que escrevi ao assistir História de Um Casamento, alguns anos atrás, foi: “Quer ser feliz? Não case! Quer fazer o outro feliz? Case!“. Esse pensamento, proveniente da sabedoria de Masaharu Taniguchi (líder religioso japonês), sacudiu todas as certezas e incertezas que eu tinha sobre relacionamentos. Agora, essa mesma analogia pode ser traçada, direta e indiretamente, ao novo filme Malcolm e Marie. Uma poesia cruel e realista, que toca nas feridas sem apelar para a violência visual, evidenciando que palavras podem fazer o outro sangrar. De mãos dadas, paixão e apatia movimentam a trama, trazendo à tona múltiplos sentimentos.
Se em História de Um Casamento Noah Baumbach dividiu culpa, dor e arrependimento ao casal protagonista, Sam Levinson seguiu a mesma receita, acrescentando um pouco mais na quantidade de ingredientes, abraçando exageros, mas sem soar caricato. É um longa-metragem difícil de idolatrar e difícil de odiar. É uma experiência paradoxal e necessária, fruto da intrigante química dos atores em cena, da fotografia bicolor e, é claro, da constante presença de longos diálogos e ausência destes, afinal, o silêncio também é parte crucial dessa receita.
Sinopse Malcolm e Marie:
Um cineasta volta para casa com sua namorada após a estreia de um filme comemorativo, enquanto aguarda o que será um sucesso financeiro e crítico iminente. A noite muda repentinamente quando revelações sobre seus relacionamentos começam a aparecer, testando a força de seu amor.
Distante, do lado de fora da casa e ansioso. É exatamente assim que o telespectador se sente no primeiro “frame” de Malcolm e Marie. Ao longe, os faróis de um automóvel indicam a aproximação dos protagonistas. E pronto! Segundos depois, você está dentro do lar, cercado por uma mobília moderna, corredores imensos e muito espaço vazio. A movimentação de câmera é precisa, realçando gestos sutis, olhares duvidosos e objetos de cena que falam um pouco mais sobre a camada metafórica do filme.
Há algo no ar: uma oscilação de humor que aos poucos alimenta nossa percepção. É notório que existe um abismo entre o casal, uma ruptura que desperta sorrisos forçados de Marie e coloca a alegria e excitação de Malcolm em xeque. E assim nasce uma sucessão de pequenos mistérios que levarão a audiência a dissecar o passado, o presente e o futuro desse par.
A partir dessa premissa conturbada, o público é pego pela mão e jogado em uma roda de discussões calorosas e revelações dolorosas. Em apenas uma noite, Malcolm e Marie abrem todas as feridas, tocando bem fundo, sem medo de magoar, assinando um atestado de casal imperfeito. Não é à toa que a culpa é jogada de um lado para o outro, como se fosse uma bola sendo arremessada. Ambos têm razões e motivações para tal comportamento. Não há alguém correto ou incorreto, apenas culpabilidade para os dois. E ao longo desse vai e volta de palavras afiadas, tanto um, quanto o outro, vestem a camisa de vencedor e perdedor.
Malcolm e Marie tem um “que” teatral que funciona até certo ponto, pois essa característica torna-se cansativa do segundo para o terceiro ato. Os diálogos, ao mesmo tempo, avançam e retrocedem a narrativa, criando uma barreira na evolução desses personagens, imprimindo a sensação de que estamos diante de um ciclo vicioso: a culpa é dela, a culpa é dele, ela errou, ele errou, ele grita, ela grita, silêncio. E tudo acontece de novo e de novo. As “pausas” durante as brigas criam uma antecipação do desentendimento que vem a seguir. Monólogos servem como palanque para que os protagonistas brilhem e mergulhem fundo, nos dando o pior, o melhor e o mediano de cada um.
Você não será juiz, sua função não é sentar na frente da tela e julgá-los. Um expectador impotente é como você se sentirá, compreendendo as angústias, traumas e sonhos. Levinson sabe que a vida a dois é uma viagem cheia de solavancos e ele aperta essa tecla mais de uma vez, sem pintar culpado ou inocente. Ele fica em cima do muro, e está tudo bem. Essa visão de pessoas cinzentas é sensível e condizente com a realidade.
A “crítica” de cinema entra em pauta e protagoniza um momento crucial no roteiro, em virtude de Malcolm, um cineasta. Ele retruca, cutuca, desdenha e questiona uma análise positiva sobre o filme que dirigiu. Sua visão é confusa e amargurada, e isso gera um debate interessante por causa da metalinguagem.
Zendaya é uma atriz gigante e versátil, capaz de utilizar até os mínimos detalhes para contar algo a mais. Sua performance é composta por uma linha de evolução, fazendo-a reluzir mesmo sem falar, sem se mexer, apenas apoiada no olhar e no gestual. Quando ela se movimenta, de um lado para o outro, falando, gritando, chorando e sorrindo, sua interpretação usurpa para si os batimentos da narrativa. Malcolm e Marie não seria o que é se a terceira letra “M” (de Marie) não estivesse na mesma equação, ao lado da letra “Z” de Zendaya.
John David Washington carrega uma dose exagerada de explosão e quietude, além de uma perfeita sintonia com sua parceira de cena. Ele dá vida ao “sonhador destruidor”, um cineasta amargo e apaixonado, ora inseguro, ora muito seguro de si. Ele vomita tudo o que está impregnado no cerne de seu personagem, nos dando uma visão completa sobre o mesmo. Sem meio-termo, sem reticências. Para mim, este é o seu trabalho mais desafiador. Não há cenas de ação como em Tenet, permitindo que ele busque respiro no malabarismo conceitual do Nolan (não, isso não é uma crítica negativa!). Aqui, David Washington é um marido, confinado numa casa, falando, falando e falando. Algo complexo, mas feito com muita competência.
No encerramento (melancólico e belo), ficamos numa posição oposta, quando comparada ao início do filme. E isso diz muito sobre nós, do que eles (os personagens). Aceitamos tudo e seguimos adiante. Não restam julgamentos, nem meias palavras, todas as cartas foram colocadas na mesa, o que é revigorante e exaustivo.
Talvez, não seja um final feliz, muito menos um desfecho infeliz. Nada é preto, nada é branco. Ao mesmo tempo que há luz, há sombras. É o cinza sendo reverenciando, mostrando que dicotomia é mera fábula. Eis dois personagens que são perfeitos em sua imperfeição.
Malcolm e Marie carrega em seu âmago mais do que uma dissertação acerca do confronto entre amor e desamor. Em quase 120 minutos de projeção (que poderiam ser enxugados) são apresentadas as diversas faces do ego, do julgamento, da autocrítica e, consequentemente, o choque entre estes. É um filme que comunica com perfeição os efeitos da “falta de comunicação”, muitas vezes propagada além da ausência de palavras.
Nota: 4/5
Assista ao trailer:
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