Crítica | O Gambito da Rainha – O Xeque-mate de Anya Taylor-Joy
Concebido, inicialmente, como um projeto fílmico que ganharia vida sob a direção do saudoso Heath Ledger, a minissérie O Gambito da Rainha percorreu uma extensa jornada até ganhar a benção da Netflix. Apresentando a vida de uma xadrezista excepcional, chamada Beth Harmon, o enredo aprofunda-se no âmago de uma personagem que transita entre o perfeccionismo, o brilhantismo e os vícios.
Constantemente chamando a atenção dos clientes, a aba mais cobiçada dentro do catálogo da Netflix — o “Top 10” — tem abrigado novidades de grande qualidade, assim como produções atemporais. Entrar no rol pode, a princípio, parecer mais fácil para as estreias, no entanto, manter-se no ranking é uma façanha que poucos conseguem. Nas últimas semanas, o serviço de streaming contemplou seus assinantes com a minissérie O Gambito da Rainha. O resultado foi a permanência do show no Top 10, mesmo após semanas do seu lançamento. Pode-se atribuir esse sucesso aos figurinos impecáveis, roteiro afiado, montagem dinâmica e, sobretudo, as atuações.
Sinopse O Gambito da Rainha:
A minissérie conta a história de Beth Harmon, uma menina órfã que se revela um prodígio do xadrez. Mas agora, aos 22 anos, ela precisa enfrentar seu vício para conseguir se tornar a maior jogadora do mundo. E quanto mais Beth aprimora suas habilidades no tabuleiro, mais a ideia de uma fuga lhe parece tentadora.
Não! Você não aprenderá xadrez assistindo O Gambito da Rainha, sequer táticas especiais sobre esse jogo milenar. É louvável ver que o roteiro não cai na armadilha de apelar para o didatismo exacerbado — existem jargões pronunciados aqui e ali, de fato, mas nada que soe expositivo. É a ausência de grandes explicações que despertam a curiosidade do público em compreender detalhes cruciais referente aos métodos do xadrez. Desse vazio explicativo surge o encanto, porque cada partida, retratada com singularidade, transmite enorme tensão para nós, deixando-nos apreensivos em qualquer movimento de peça sobre o tabuleiro.
É pelas mãos hábeis de Beth Harmon que o mundo de mosaico se revela a cada capítulo. A humanização da personagem vai muito além das partidas jogadas no porão do orfanato, enquanto é criança, e dos campeonatos regionais que ela disputa indo da adolescência para a fase adulta. Beth é uma campeã quando seu ringe é o tabuleiro, de fato, mas isso não acontece quando seu campo de batalha é a dura e implacável realidade, que desde o começo bate de frente com ela, taxando-a como uma “perdedora” — tanto no sentido pejorativo da palavra, quanto pela ótica de alguém que se vê diante de muitas perdas, materiais ou imateriais. Uma contrastante vida de derrotas e vitórias.
O texto de Allan Scott — com trinta anos de existência — é gigante e maduro. Há três décadas, o roteirista buscava uma oportunidade de contar sua obra em Hollywood, mas foi pela força divina da Netflix que a história tomou forma. Scott escreveu diálogos ágeis que flertam com um genuíno humor crítico, que passam por declarações íntimas de seus personagens (expondo fraquezas e sonhos) e chegam até um “subtexto” que constrói o tom realista da minissérie.
Quando a temática do machismo é abordada no ambiente ao qual a história se passa, por exemplo, a mão do criador não apela para um discurso panfletário que visa demonizar personagens, afim de criar “antagonistas prontos”. Muito pelo contrário, a sutileza de Scott é vista na forma como ele trata cada rosto de sua história: com humanização. A bondade excessiva, a indiferença que nasce da frieza, o perfeccionismo e a competitividade são pilares que habitam o cerne de cada personagem, mostrando que falhas e virtudes podem sim ocupar o mesmo corpo, mente e alma. Afinal, o ser humano detém emoções e características multidimensionais.
É a partir dessa elaboração que o desenrolar da história nos brinda com personagens tão vivos. Até mesmo os coadjuvantes, que poderiam ficar à mercê da protagonista, recebem a devida atenção em uma construção precisa e verdadeira. Em especial, Marielle Heller (que interpreta Alma Wheatley, a mãe adotiva de Beth Harmon), conhecida por dirigir filmes como Um Lindo Dia na Vizinhança e Poderia Me Perdoar? Aqui a veterana doa seu dom artístico em um inesquecível trabalho na frente das câmeras.
Moses Ingram, no papel de Jolene, tem uma presença de cena avassaladora. É incrível o que a atriz consegue fazer ao encarnar sua personagem em diferentes fases de sua vida, mostrando um desenvolvimento crescente. Já Harry Melling, famoso por infernizar a vida de Harry Potter como o primo Duda, tem cada vez mais se mostrado um ator versátil. Suas cenas em O Diabo de Cada Dia ainda não saíram da minha mente, e em O Gambito da Rainha, sua participação é tão marcante quando o filme citado, com mais tempo de tela, é claro.
Em 2015, quando o cineasta Robert Eggers, diretor do longa A Bruxa, presenteou Anya Taylor-Joy com uma personagem repleta de camadas e significados, a atriz, na época com apenas 19 anos, entregou-se ao papel. Ali, nasceu uma das performances mais elogiadas no Cinema de Terror das últimas décadas. Tamanha exaltação não é exagero, pois um ano depois Anya repetiu sua façanha, colocando no seu currículo uma atuação inesquecível através do filme Fragmentado. E finalmente chegamos em 2020, ano que Taylor-Joy provou sua versatilidade no filme Emma, só que o seu “xeque-mate” viria somente meses depois, em O Gambito da Rainha.
Neste recente projeto, a intérprete de Beth Harmon cresce como atriz, utilizando o olhar como tela para pintar todos os medos e desejos que explodem dentro de sua personagem. Se o “sentido da visão” serve como palco para Anya Taylor-Joy dar vida a sua protagonista, o silêncio amplifica esse talento, pois é na quietude que aflora as emoções mais intensas da jogadora de xadrez. Uma atuação contida, que torna-se grandiosa pelos detalhes de uma interpretação banhada de naturalidade e, acima de tudo, verdadeira em cada segundo.
Não me causará espanto se a atriz for indicada por sua atuação ao Globo de Ouro, SAG Awards e Critics’ Choice Awards, tampouco surpresa, se porventura ela arrematar os prêmios. Anya conquista um status admirável como atriz, pois através de O Gambito da Rainha ela assina seu nome no mural de artistas extraordinários desta geração.
A Direção de Arte, que salta aos nossos olhos quando estamos confinados dentro das salas, quartos e ambientes, cria uma harmonia palpável entre espaço, tempo e expressão emocional dos personagens. Vale reverenciar como o figurino, cabelo e maquiagem transportam nossa experiência para as décadas de 1950 e 1960. Cada tecido que compõe os trajes é como um lembrete vivo da época. Indo além, há uma vestimenta presente no último episódio que, simbolicamente, transforma a protagonista na “peça” da rainha do xadrez, através da cor e forma. Momento este que fica claro todo o cuidado desse setor para compor a relação entre imagem e aspecto psicológico dos personagens.
Quem também merece aplausos é o departamento responsável pala Montagem da minissérie. Tudo é feito com extremo cuidado, costurando tomadas contemplativas e momentos marcantes com esplendor — especialmente nos episódios 6 e 7, cuja a organização das cenas entrega uma dinâmica calorosa e ritmada.
Moldando novas narrativas que marcam território na nossa memória audiovisual, a Netflix entrega um hit primoroso, que emociona, fascina e conquista nossa curiosidade. Mediante uma narrativa astuta, eis uma história que magnetiza nosso deslumbre por esse universo quadriculado, composto por reis, rainhas, peões e cavalos.
Evoluindo com o tempo e transformando-se em um chamariz, a minissérie é uma das obras dramáticas mais bem-sucedida do streaming. Excelente em todos os quesitos, este é um dos poucos projetos que terá um longo tempo de vida na mente dos espectadores. Em suma, O Gambito da Rainha é uma jogada de mestre.
Nota: 5/5
Assista ao trailer:
Veja também: Crítica | Os Novos Mutantes.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.