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CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Meu Nome é Maria é uma necessária reparação histórica

Meu Nome é Maria faz um retrato necessário da vida de Maria Schneider antes e após O Último Tango em Paris

Na mitologia grega, Cassandra foi uma princesa troiana amaldiçoada pelo deus Apolo, apresentava o dom da profecia, porém, ninguém jamais acreditava nela. Estudiosos utilizam Cassandra como um modo de retratar o silêncio imposto em mulheres dentro da sociedade, não apresentando a possibilidade de falarem, ou, ao falarem, serem questionadas sobre a veracidade em sua fala.

Dirigido por Jessica Palud, Meu Nome é Maria conta a história de Maria Schneider, a jovem de 19 anos que contracenou com Marlon Brando em O Último Tango em Paris (1972).

O Último Tango em Paris continua impactando no ano de 2024. A história de um casal que decide viver histórias de luxúria em um apartamento, sem saber nem mesmo o nome de seu companheiro, e vivenciando os desejos mais carnais e sinceros, tornou o filme uma das produções cinematográficas mais discutidas de todas, principalmente por conta da cena do estupro de Maria Schneider pela parte de Marlon Brando e o diretor Bernardo Bertolucci.

Anamaria Vartolomei, como Maria, e Matt Dillon, em uma caricatura de Marlon Brando, estão excelentes em seus respectivos papéis. Palud representa com muita beleza o brilho natural de Maria Schneider e Anamaria trespassa isso ao espectador com um único olhar, trazendo uma sutileza e doçura à personagem, porém, é este mesmo olhar que nos destrói ao chegar a famosa cena do estupro.

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Anamaria Vartolomei em cena de “Meu Nome é Maria”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

A cena que foi refilmada para Meu Nome é Maria, consegue ser ainda mais terrível do que a cena filmada por Bertolluci, por dois motivos específicos: a onisciência do público que sabia da iminência daquele momento, e pelo close nas reações de dor de Maria, algo que nem mesmo Bertolluci fez em seu filme, mantendo a câmera mais distante.

Meu Nome é Maria cumpre o papel não de cinebiografia, mas de reparação histórica. Brando, Bertolluci e Maria já faleceram. O ato cometido com a jovem de 19 anos nunca foi dignamente discutido em público, afinal, foi escondido da indústria por conta de questões jurídicas e sociais que afetariam principalmente Maria, sendo aconselhada até mesmo pelo pai a se manter calada.

Do mesmo modo que uma Cassandra contemporânea, se Maria falasse tudo que sofreu, duvidariam da veracidade de suas palavras, e tristemente o movimento #MeToo surgiu somente em 2017, 6 anos após sua morte.

Meu Nome é Maria apresenta duas Marias distintas, a primeira vive com a mãe e se aproveita dos contatos que o pai apresenta dentro da indústria cinematográfica, é sonhadora, determinada, corajosa, engraçada e em certo nível inocente, apresentando longas conversas com Brando que geram no espectador um falso senso de segurança da parte do homem. A segunda Maria Schneider se apresenta após do crime ocorrido no set de O Último Tango em Paris, uma Maria mais madura, destruída, com receio de se abrir, menosprezada pela indústria, viciada em drogas, que encontra um novo amor, mas, o destrói por conta de seu próprio comportamento.

Jessica Palud constrói uma demarcação clara entre estas duas Marias, principalmente por meio da atuação de Anamaria Vartolomei, que amadurece na nossa frente na medida que enxergamos como Maria Schneider lida com o trauma e a humilhação causadas por homens como Brando e principalmente por Bernardo Bertolucci, colocado no filme como a verdadeira força antagônica, sendo uma representação do impacto que homens causam em mulheres de todo o mundo.

Meu Nome é Maria

Anamaria Vartolomei em cena de “Meu Nome é Maria”- Foto Divulgada pelo Festival do Rio

Meu Nome é Maria é um pedido de desculpas para Maria Schneider, uma jovem que jamais se recuperou após ter sido abusada, humilhada e desprezada pela indústria cinematográfica, após sofrer uma crime orquestrado por dois homens, em posição de autoridade, e apoiados por inúmeros cúmplices silenciosos que não interferiram, apesar da dor legítima de Maria.

Meu Nome é Maria é um filme forte que expõe uma verdade oculta por tempo demais. É estruturado de forma que o espectador apresenta vontade de resgatar Maria e avisá-la de tudo que a espera, porém, isto não ocorre, e somente podemos sentar e ver o brilho de uma mulher ir sumindo aos poucos.

Até onde sabemos, Milton Nascimento em sua música “Maria, Maria” , não canta sobre Maria Schneider e não apresenta relações com Meu Nome é Maria, porém, a descrição de dor e alegria que ela apresentou ao longo da vida, esta luta por manter a alegria e a determinação apesar de tudo, e a sua perseverança que Jessica Palud representa tão bem, é algo vivido por muitas mulheres até os dias de hoje, é resumida de modo lúdico por meio das seguintes estrofes da música:

“Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”

Hoje conseguimos reconhecer a força de Maria Schneider e como a julgamos mal, e isto é o mínimo para ela ter um pouco da tão merecida paz que buscou ao longo de sua vida.

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