Arquivos: Reviews

  • CRÍTICA | Heartstopper amadurece e ensina como lidar com as adversidades em sua 3º Temporada

    CRÍTICA | Heartstopper amadurece e ensina como lidar com as adversidades em sua 3º Temporada

    Heartstopper se aproveita de todos os personagens estarem mais bem resolvidos consigo mesmos para conversar com o espectador sobre a importância da saúde mental.

    Depois de enfrentarem o medo do preconceito para com o amor que sentem um pelo outro, Nick e Charlie encontram novas adversidades para enfrentarem, já que namorar não resolve tudo, e cada um vai amadurecer a seu próprio modo de acordo com o que o outro estiver passando, percebendo que em alguns momentos a única tarefa que resta é mostrar que está ali pela pessoa, algo que demanda muita força.

    Como ficou claro só pela sinopse dessa terceira temporada de Hearstopper, os novos desafios encontrados pelo casal protagonista e sua turma não é daqueles que se vê habituado em assistir numa produção juvenil, principalmente uma que sempre manteve um tom mais leve, como se o mundo que se encontrasse fosse mais ideal do que aquele que estamos acostumados a ver. Contudo, a abordagem realizada aqui mostra que a criadora da obra que a série adapta, Alice Oseman, sabe sim em que mundo vive.

    Ao final da 2º temporada, Nick começou a notar que Charlie estava apresentando problemas alimentares, problemas que estavam relacionados ao seu estado mental, e esse assunto se agrava aqui. Terapia, clínicas para doenças e como ajudar alguém que se importe mas está numa situação difícil de entender, são assuntos que ganham força, sendo abordados com um tom mais melancólico e sério, um tratamento cuidadoso para não despertar gatilhos, mas também não passar despercebido como se fosse uma gripe da semana.

    Heartstopper | Netflix

    Heartstopper | Netflix

    O episódio “Jornada” entrega não só o melhor episódio da produção, como um dos melhores se tratando de abordar um tema sério com uma profundidade que dá inveja pras mídias que acabam passando dos limites ao retratar a dor ou se limitam à mensagens superficiais como se fosse algo fácil. A maturidade em falar sobre acontecimentos, e não mostrar, em falar que é um processo que pode ser para toda a vida e que algumas pessoas não melhoram esclarece que há um conhecimento por trás de quem aborda o problema.

    E o bom, é que mesmo após um momento de angústia e tristeza, a narrativa continua a trabalhar os anseios adentrando na parte interna de cada um daqueles adolescentes que se completam com os amigos ao redor, indo do professor para o próprio namorado. Os jovens tem problemas, e assim como não devem lidar com eles sozinhos, também não precisam carregar fardos que não lhes pertence. As adversidades ficam mais fáceis de serem combatidas com o apoio, até mesmo as mais banais como o medo do sexo.

    Ao trabalhar um assunto até então distante, já que a série sempre apresentou mais flores para com o seu universo, dando a sensação de que os personagens eram santos demais para falarem sobre as descobertas vindas na puberdade, Hearstopper encontra um modo de balancear a parte dramática com a parte divertida de estar na fase do colégio, que é se descobrir, descobrir aquilo que excita e agrada, tal como aquilo que não combina, ainda mais quando se trata do tempo que é dado para isso.

    Heartstopper | Netflix

    Heartstopper | Netflix

    Felizmente, a série consegue transmitir segurança e maturidade sobre os assuntos que aborda, quase educando aqueles que assistem, pois desde o começo fala sobre a sexualidade, a auto-descoberta, as relações tóxicas, como conversar sobre assuntos que os outros podem não entender, e agora, sobre como lidar com doenças mentais e os desejos carnais que surgem conforme cresça.

    A produção encontra um jeito respeitoso de se manter divertido, confortável, com episódios redondinhos apresentando problemas que são resolvidos neles mesmo, sem soar apressado ou superficial, e com a delicadeza necessária, entrega cenas introspectivas para mostrar uma forma de lidar com alguns problemas, dando tempo para os atores sentirem o que seus personagens pedem, muitas vezes tirando a trilha sonora para ganhar mais atenção daquele que assiste e num ritmo certeiro, aumentar uma música que vem com fluidez para entregar a emoção ideal que o momento anseia.

    A 3º Temporada de Hearstopper é a melhor da série até agora, ela aproveita o afeto que o espectador criou para com os personagens e te quebra com uma narrativa real o suficiente para te atingir e fazer se enxergar naquela situação, para aprender o básico que muitas pessoas não se permitem ter noção, de que a saúde mental é a coisa mais importante e delicada que alguém pode ter e precisa de um cuidado, uma atenção, acima de tudo, sejam problemas familiares ou escolares.

    Além de que, as pessoas com quem convive, conversa, que considera de coração, seja família ou não, farão o máximo para cuidar daquele que necessita. Mas é preciso que a pessoa com problemas permita esse auxílio, porque do contrário, pode acabar se afundando em um poço que ficará cada vez mais difícil de sair, podendo afastar e magoar aqueles que tanto ama e se importa. Então, se precisa de ajuda, busque. O mundo de certas pessoas não está preparado para viver sem você.

    Veja também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Serra das Almas é um thriller catártico

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Serra das Almas é um thriller catártico

    Dirigido por Lírio Ferreira, Serra das Almas usa a violência e a tensão para construir um potente drama

    Serra das Almas se inicia com uma montagem paralela entre uma mulher nadando em um rio em extrema paz, e um grupo de pessoas gritando em uma vã, porém, com uma música tão alta que não se consegue distinguir o que dizem, somente conseguimos perceber que dois dos homens estão portando armas, uma mulher está ferida no banco do passageiro e um homem está morto no fundo.

    Com este começo inusitado, Serra das Almas me lembrou muito o cinema de Quentin Tarantino, sendo esta cena diretamente relacionada à Cães de Aluguel (1992), porém, as referências ao diretor norte americano não se encerram aí. O filme apresenta uma narrativa não linear, algo muito visto em Pulp Fiction (1995), se passa inteiramente em uma casa isolada, como em Os Oito Odiados (2015), personagens femininas fortes como em À Prova de Morte (2007), e apresenta diálogos potentes sobre objetivos de vida e ambições de seus personagens, marca registrada de toda sua filmografia.

    Lírio Ferreira se inspirou nestas referências consagradas do cinema para contar a história de um rapto de duas jornalistas que são presas na região de Serra das Almas, no Pernambuco. Impossibilitadas de escapar, vamos aprendendo aos poucos o que as levou a estar naquela situação, além de conhecermos mais profundamente seus captores.

    Serra das Almas

    Serra das Almas- Foto divulgada pelo festival do Rio

    Existe uma dualidade ao longo do filme, ao explorado pela atriz Julia Stockler, no debate ocorrido após a sessão realizada no Cine Odeon, no centro do Rio de Janeiro: os homens se matam, enquanto as mulheres, que não se conhecem, protegem umas as outras e criam uma relação por meio do ato de cuidar da companheira.

    Apesar da produção se arrastar muito ao longo do segundo ato, um momento que o ritmo fica mais devagar, com o objetivo de explorarmos melhor os desejos dos personagens, seja a filha do dono do jornal que está presa com a amante do pai, o captor que deseja ir para os EUA e ser senador, o outro captor que deseja ser um palhaço do caos e um personagem que começa inocente, mas, se torna a maior surpresa do filme.

    Em Serra das Almas, nenhum personagem é o que parece, este é o ponto forte do roteiro de Paulo Fontenelle, Audemir Leuzinger e Maria Clara Escobar. O que se inicia como uma história de rapto que poderia ser a mesma coisa que já vimos tantas vezes no cinema, se torna uma exploração sobre violência, liberdade, o modo como o nosso lugar de nascimento nos toma como refém e impede que façamos algo a mais, e uma ode à sororidade feminina.

    Serra das Almas

    Pally, Mari Oliveira e Julia Stockler em “Serra das Almas”- Foto divulgada pelo festival do Rio

    Na produção, Julia Stockler, Pally e Mari Oliveira, se tornam organicamente um trio que domina o filme, por meio da linha do tempo não cronológica, percebemos como a força violenta do machismo, tira o brilho destas mulheres e que somente quando elas se unem, se torna possível vencer.

    Serra das Almas faz um excelente trabalho com a trilha sonora, trazendo agonia por meio de um tinnitus que aparece constantemente, uma trilha sonora composta de um coro de vozes que se apresenta diferentemente ao longo do filme, e o próprio silêncio vindo do isolamento em uma casa na região da Serra das Almas.

    Ao final da produção, terminamos em êxtase, do mesmo modo que Bacurau (2019) de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, nos traz uma catarse por meio da violência, Serra das Almas apresenta um sentimento semelhante, em uma certa “justiça divina”, vindo na forma destas mulheres que sofreram durante o filme todo e finalmente conseguiram se libertar.

    Leia também

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | O Homem que Amava Discos Voadores: o sucesso por mentiras

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | O Homem que Amava Discos Voadores: o sucesso por mentiras

    Dirigido por Diego Lerman, O Homem que Amava Discos Voadores discute jornalismo por meio de

    O Homem que Amava Discos Voadores conta a história de José, um jornalista que descobre o caminho para o sucesso ao se tornar responsável pela cobertura de uma suposta presença extraterrestre, em um vilarejo na Argentina.

    Aproveitando a oportunidade, José orquestra a reportagem de tal maneira que transforma a reportagem jornalística em uma produção ficcional, com direito a pintar cabelo de crianças e construção de cavernas cenográficas.

    Do mesmo modo que o fidalgo de La Mancha escrito por Miguel de Cervantes, em O Homem que Amava Discos Voadores, José cria toda uma história na sua cabeça, enquanto sempre seguido por sua voz da razão na forma de seu câmera: Pancho. Não ironicamente, muda-se somente uma letra e vira o nome do acompanhante de Dom Quixote.

    José é um personagem que, como toda a humanidade, sonha em ser mais. Supersticioso, divorciado, com uma filha adolescente e muito carisma, ele é uma construção absurda perfeita, um homem que convence uma cidade inteira a se unir em pró de uma possível presença extraterrestre. Um dos melhores momentos de sua produção se encontra em seus créditos finais, aonde percebemos que todos os absurdos do filme, enxergados como ficcionais, na verdade foram reais e ocorreram na Argentina durante a década de 80.

    O Homem que Amava Discos Voadores

    Mónica Ayos e Leo Sbaraglia em O Homem que Amava Discos Voadores- Cr. Cleo Bouza / Netflix ©2024

    Billy Wilder construiu com o seu A Montanha dos 7 Abutres, um filme que discute o jornalismo sensacionalista e a busca por notícias chocantes para aumentar a audiência do jornal. Em O Homem que Amava Discos Voadores, Diego Lerman constrói algo semelhante, porém, de uma forma bem mais humorística, permitindo um enfoque maior no programa de variedades e talk shows, satirizando a construção de imagens que a televisão constrói com o objetivo de enganar o público, como um programa de entrevistas que se passa em uma banheira sem água.

    O Homem que Amava Discos Voadores é uma produção de entretenimento, dentro de um serviço de streaming que cada vez mais está indo para novas direções, com resultados diversos, que é a NETFLIX. Mas enquanto assistia o filme em uma sala com menos de 30 pessoas, percebi que é muito mais interessante assistir este filme do que outras produções norte-americanas da plataforma que acabam caindo na mesma história de sempre, focando em grandes nomes e deixando o roteiro de lado, algo que esta produção argentina não faz, focando em um roteiro simples e cômico, para demonstrar os absurdos da televisão de entretenimento.

    O Homem que Amava Discos Voadores estreia dia 18 de Outubro na plataforma da NETFLIX.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL RIO) | A Vilã das Nove é tudo que um bom filme deve ser

    CRÍTICA (FESTIVAL RIO) | A Vilã das Nove é tudo que um bom filme deve ser

    Dirigido por Teodoro Poppovic, A Vilã das Nove mistura comédia, drama e metalinguagem em uma produção surpreendente.

    Na metade de A Vilã das Nove eu percebi que estava com um sorriso de ponta a ponta, eu não estava com muitas expectativas, porém, desde seu inicio, percebe-se algo grandioso. A produção conta a história de Roberta, uma mãe recém-separada que se descobre a principal inspiração para a vilã da novela das nove.

    O nome da produção já transmite o tom almejado, na medida que a novela brasileira ainda apresenta picos enormes de audiência, e faz sucesso internacional, uma produção com o nome de A Vilã das Nove, por conta de nosso inconsciente coletivo de brasileiro, já é um nome que atrai público.

    A Vilã das Nove discute uma metalinguagem em seu processo, mostrando os bastidores desde a construção narrativa, até os problemas que podem surgir durante os sets de filmagem. O diretor Teodoro Poppovic se inspirou em produções que discutem o próprio cinema como Sunset Boulevard (1950) de Billy Wilder e Barton Fink (1991) dos Irmãos Coen, trazendo uma mistura de gêneros para a produção que variam do drama à comédia.

    A maior força de A Vilã das Nove se mostra em seu trio de mulheres protagonistas. Karine Teles, Camila Márdila e Alice Wegmann, apresentam personagens distintas entre si, seja de idade ou de construção psicológica, porém, todas apresentam uma aura, conseguindo roubar o holofote para si, porém, nunca privando as demais de seu momento de glória.

    A Vilã das Nove

    Cena de “A Vilã das Nove”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    O elenco de A Vilã das Nove como um todo é cheio de surpresas, com destaque para Antônio Pitanga por uma das cenas mais engraçadas de toda a produção. Tudo sendo conduzido por um roteiro coeso que sabe muito bem aonde quer chegar e como pretende alcançar, auxiliado por uma fotografia simples, mas, eficiente, e uma direção de arte bem feita que aprecia muito uma dicotomia de branco e vermelho, presente algumas vezes em interações diversas.

    Para fechar com chave de ouro, A Vilã das Nove produz uma potente história sobre maternidade e a importância de se redimir com o passado, trazendo momentos leves que acrescentam aos momentos mais dramáticos, principalmente na relação entre Roberta, Karine Teles, e Débora, Alice Wegmann, que conseguem prender o espectador do mesmo modo que toda boa novela.

    Antes de seu lançamento nacional no dia 31 de Outubro, A Vilã das Nove terá mais uma sessão no Festival do Rio e seguirá em seguida para a mostra de cinema de SP.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Todo mundo ama Touda se arrasta em uma trama circular

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Todo mundo ama Touda se arrasta em uma trama circular

    Dirigido por Nabil Ayouch, Todo mundo ama Touda é lindo, mas, repetitivo após sua primeira hora

    Todo mundo ama Touda inicia com um letreiro explicando o que é uma Sheika: uma categoria de mulheres que usa o canto e a dança como forma de libertação, principalmente por conta da Aita, a epítome da poesia musicada, que transforma tanto quem escuta, quanto quem canta.

    Touda tem o sonho de ser uma Sheika, para se estabelecer em Casablanca e conseguir um futuro melhor para si e para seu filho surdo. A ironia clara da Sheika apresentar um filho surdo, é mostrada por meio do apreço que a mãe tem por ele. Touda daria a vida se isso significasse um futuro melhor para sua criança, assim, ela se submete a cada vez mais absurdos, sempre com ele em mente.

    Na medida que a produção se passa dentro na sociedade marroquina, um local extremamente machista, acompanhamos desde a primeira cena o tom que se dará no resto do filme: Touda canta lindamente, Touda é vista como objeto sexual, e sofre as consequências por ser uma mulher independente e livre, em uma sociedade dominada por homens.

    Todo Mundo Ama Touda

    Nisrin Erradi em “Todo Mundo Ama Touda” – Foto divulgada pelo Festival do Rio.

    Todo mundo ama Touda nos apresenta duas Toudas. A primeira é a mãe caridosa, melancólica e atenciosa, enquanto a segunda se liberta durante as suas performances, Nisrin Erradi cativa à todos durante cada uma de suas perfomances, cantando de modo que sempre traz uma tristeza por trás.

    Ao longo de Todo mundo ama Touda, perdi a conta de quantas vezes sua protagonista é vista erroneamente como uma prostituta, seja pelo seu chefe ou pelos homens para quem canta. Apesar desta discussão ser importante, principalmente na atualidade, ocorre um desgaste após a primeira uma hora, sempre repetindo a mesma primeira cena, sem acrescentar nada de novo e somente mais dor para sua protagonista.

    Uma mudança ocorre quando Touda se muda para Casablanca, lá ela conhece um violinista que se torna um mentor para sua jornada e indiretamente permite que ela finalmente se liberte deste ciclo. Em uma performance final, acompanhada por um longo plano sequência, vemos a última performance de Touda, porém, enquanto os homens continuam agindo do mesmo modo que sempre, Touda aceita que não merece mais isso, e desiste de terminar o seu canto. A câmera a segue e o filme se encerra com um sorriso misturado de lágrimas, em um final agridoce.

    Apesar do final impactante de Todo mundo Ama Touda, não consigo relevar o fato que assistimos por uma hora e 40 o mesmo ciclo de ação e reação, e que cansa a audiência a ponto de uma pessoa na sala de cinema roncar alto durante a produção.

    A maior falha de Todo mundo ama Touda não é a direção de fotografia, não é a direção de arte que apresenta vestidos cada vez mais lindos e não é o roteiro, pois a história de Touda é eficiente e muito forte. Seu maior problema é o ritmo cansativo, ao enfatizar tantas vezes seu ciclo de sofrência, a produção perde forças, justamente por termos visto a mesma situação anteriormente.

    Todo mundo ama Touda é o representante oficial de Marrocos para a pré seleção do Oscar de melhor filme internacional do ano de 2025, tentando uma vaga juntamente com A Garota da Agulha e Matem o Jóquei.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Retrato de um Certo Oriente demonstra a harmonia na Amazônia

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Retrato de um Certo Oriente demonstra a harmonia na Amazônia

    Dirigido por Marcelo Gomes, Retrato de um Certo Oriente usa dois irmãos libaneses para discutir sobre memória, imigração e sincretismo religioso

    Baseado no livro de Milton Hatoum, escolhido por Marcelo Gomes por ser inadaptável, Retrato de um Certo Oriente, conta a história de Emilie e Emir, dois católicos, que fogem do Líbano após o assassinato dos pais. Ambos embarcam em uma jornada de navio em direção ao Brasil, enquanto Emir descobre o amor pela fotografia, Emilie se apaixona por um Árabe muçulmano, trazendo a ira de seu irmão.

    A discussão principal de Retrato de um Certo Oriente é a possibilidade de convivência pacífica entre os povos, não por coincidência, a equipe presente no Cine Odeon, antes e depois da apresentação do filme, soltaram gritos legítimos de “Palestina Livre”. Dentro da produção, um árabe que ora para Allah tem um relacionamento com uma católica libanesa, que tem o irmão salvo graças à medicina tradicional indígena.

    O filme apresenta um sentimento melancólico, estamos na viagem junto com Emilie e Emir e sentimos a força da floresta amazônica junto com eles, por conta de pessoas da cidade não apresentarem um contato profundo com estas raizes, ficamos tão maravilhados quanto, e a fotografia nos auxilia dentro deste processo.

    A produção é lenta, porém, visualmente estonteante. A Amazônia é tratada como algo imenso e surreal, todos os personagens são pequenos perto dela, inclusive o espectador. A decupagem auxiliada por uma fotografia em preto e branco, segundo Marcelo Gomes uma escolha exigida por sua protagonista, transmite um sentimento de grandiosidade dentro de uma estética que remete aos primórdios do cinema, não por acidente que o diretor de fotografia Pierre de Kerchove, cita Limite de Mario Peixoto como uma grande referência.

    Retrato de um Certo Oriente

    Cena do filme “Retrato de um certo Oriente”- Foto Divulgada pelo Festival do Rio

    Com o protagonismo do filme sendo direcionado para Emilie, Emir é pouco explorado ao longo de Retrato de um Certo Oriente, sendo rebaixado a um irmão raivoso da irmã e desaparecendo por grande parte do segundo ato, porém, sua importância é fundamental por conta do apreço que ele encontra em fotografias.

    O único momento da produção em que existe alguma cor, é no momento de revelação destas fotos, quando os personagens são iluminados por uma luz vermelha e divina, apresentando uma segunda discussão fundamental: a fotografia e o modo como ela é usada para captar memórias.

    Marcelo Gomes mudou o nome original do livro de Hatoum de Relato de um Certo Oriente, para Retrato de um Certo Oriente, enfatizando a força da fotografia e o modo com o qual ela traz redenção, por meio de uma aceitação das memórias do passado, e um olhar de esperança para o futuro, mesmo com a saída de um lar destruído, no caso de seus personagens a Líbia, é possível construir novas memórias e relações em outros lugares.

    Leia também:

  • CRÍTICAS (FESTIVAL RIO) | Manga D’ Terra peca em sua premissa

    CRÍTICAS (FESTIVAL RIO) | Manga D’ Terra peca em sua premissa

    Apesar do brilho de Eliana Rosa, Manga D’Terra é somente uma contemplação rasa de sua história

    Dirigido por Basil Da Cunha, Manga D’Terra é o seu primeiro musical, um gênero que ele mesmo não gosta muito, porém, suas sequências musicais acabam sendo o ponto alto do filme, sendo muito bem coreografadas e cantadas de modo belo por Eliana Rosa, em seu primeiro longa metragem.

    Manga D’Terra conta a história de Rosinha, uma mulher negra, da periferia de Portugal que canta para conseguir dinheiro e mandar para seus dois filhos, que não aparecem fisicamente ao longo da produção. Este acaba sendo um dos problemas do filme, em diversos momentos é explicado o que deveria ser mostrado, e isto não ocorre somente nas performances musicais, mas, também nos diálogos.

    Manga D’Terra poderia funcionar melhor como um curta metragem, ao se encaixar no gênero musical, dentro de um cinema contemporâneo português, a produção avança de modo repetitivo, vemos Rosinha sofrer, vemos Rosinha cantar, vemos Rosinha sofrer, vemos Rosinha cantar. Após um tempo este ciclo se torna cansativo, mesmo com uma linda iluminação e uma construção de cenário que poderia ter sido melhor explorada.

    Manga D'Terra

    Eliana Rosa em cena de “Manga D’Terra”- Foto Divulgada pelo Festival do Rio

    Sendo um favela movie, da mesma forma que Cidade de Deus (2002), Fernando Meirelles, e Tropa de Elite (2007), José Padilha. Manga D’Terra perde a chance de explorar a estrutura da favela portuguesa e reforçar uma crítica presente na produção, porém, explorada de modo amador.

    Fernando Meirelles tornou uma caçada à galinha interessante, justamente por conta do modo como ela foi construída, fazendo diversas analogias com a favela como um todo, porém, Basil da Cunha não apresenta este tato, não explorando profundamente nenhum destes temas, a sua cena de perseguição policial é editada de modo que não transmite a tensão desejada para o momento.

    A produção apresenta diversos erros narrativos, o que aparentava ser uma história direta sobre uma mulher em necessidade, fica em segundo plano, ao invés disso somos apresentados à cenas de comédia que duram um pouco demais, como a discussão sobre demorar 5 horas para comprar cigarro, e a clichês que não se seguram como antes, como o produtor musical abusador.

    Eliana Rosa carrega o filme nas costas, após a sessão do filme, ela conversou com a audiência e cantou músicas do filme, até mesmo dando uma palhinha de Alcione, mas, tristemente ela sozinha não consegue levantar o filme acima de uma produção mediana, que ao final parece que se encontra no mesmo lugar que no começo, muito por conta de decisões equivocadas do roteiro, focando em coisas que não deveria, ao invés de enfatizar o drama cotidiano de Rosinha como uma mãe que faria de tudo por seus filhos.

    Leia também

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Apesar de lindo, Parthenope perde força em sua protagonista

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Apesar de lindo, Parthenope perde força em sua protagonista

    Em Parthenope, Paolo Sorrentino, faz sua primeira protagonista mulher uma personagem linda, porém, superficial.

    Paolo Sorrentino é um mestre do cinema contemporâneo Italiano, A Grande Beleza (2013) e Juventude (2015), são filmes belos tanto em questões estéticas, principalmente na fotografia que se tornou uma marca registrada da carreira de Sorrentino, quanto em suas famosas reflexões sobre a vida, principalmente no quesito do envelhecimento, porém, enquanto o diretor italiano sabe trabalhar com maestria este questão em personagens masculinos, o mesmo não se pode dizer para a sua primeira protagonista feminina.

    Existem lendas diferentes sobre Parthenope, a mais conhecida está presente na Odisseia de Homero, aonde foi uma meiga sereia que falhou em enfeitiçar Ulisses, assim, se matando de sofrimento. Sorrentino reimagina esta lenda por meio de uma protagonista que é vista ao longo de toda a produção como algo maior do que humana, porém, que pode ser facilmente resumida em três palavras, verbalmente expostas a ela ao longo da produção: ela é bonita, ela é inteligente e ela é atrevida.

    Sorrentino mostra a jornada de Parthenope, desde seu nascimento nas águas, seu nome como uma homenagem à cidade de Nápoles, sua juventude, seu amadurecimento e rapidamente sua velhice, uma pena, pois é um período que poderia ter sido muito melhor explorado para ocasionar uma maior catarse à produção.

    A questão é, enquanto os personagens de Sorrentino como Jep Gambardella de A Grande Beleza apresenta tantas camadas, porque a sua sereia apresenta somente 3? Ao retratar sua protagonista como algo maior do que humano, Parthenope perde todo o potencial que poderia ter sido alcançado caso apresentasse mais camadas dentro de sua odisseia.

    Apesar de ser maravilhoso acompanhar a beleza surreal de Celeste Dalla Porta, com roupas sensuais e um sorriso que incentivaria qualquer um a pular do penhasco do mesmo modo que a sereia de Homero. Percebemos, como já discutido em outras produções de Sorrentino, incluindo esta, que a beleza é algo magnífico, mas que não dura eternamente, assim, mesmo com seu brilho natural, Celeste não consegue trazer destaque a uma personagem que se apresenta fraca, dentro de tantos personagens masculinos que apresentam maiores nuâncias em suas ações.

    Parthenope

    Parthenope lida com diversos homens em diferentes etapas de sua vida, desde o seu irmão que apresenta um amor incestuoso e age como a sereia do mito de Homero, se matando após perceber que jamais conseguiria tê-la, o escritor John Cheever, interpretado por um suado Gary Oldman, um padre milagroso, entre outros. Na medida que estes são enxergados como humanos, Parthenope é sempre vista como algo divino, cativando no começo e perdendo força na medida que o filme avança em suas mais de duas horas.

    O filme apresenta diversas marcas tradicionais do cinema de Sorrentino, sua fotografia nunca esteve tão bonita, os simbolismos estão pontuais, o roteiro apresenta discussões sobre amor e velhice, e existe um bizarro onírico, neste caso remetendo à La Dolce Vita (1960), de Federico Fellini, porém, enquanto este tinha Marcello Mastroianni em um dos personagens mais ricos do cinema italiano, Parthenope tristemente não consegue chegar neste nível de complexidade, na medida que Sorrentino explica diversas vezes ao longo do filme que ela é linda, ela é inteligente, e ela é atrevida, uma pena que mesmo com todos os esforços e beleza, o filme não permite que ela seja mais do que esta sereia intocável e distante.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL RIO) | Matem o Jóquei cativa pelo absurdo de sua produção

    CRÍTICA (FESTIVAL RIO) | Matem o Jóquei cativa pelo absurdo de sua produção

    Dirigido por Luis Ortega, Matem o Jóquei oscila entre o real e onírico para contar a história da busca por um propósito.

    O cinema argentino apresenta algumas premissas únicas, um exemplo é a vaca que cai do céu no filme Um Conto Chinês (2013), porém, a partir destes absurdos, estas produções se destacam dentro do cinema latino-americano.

    Matem o Jóquei, pré-indicado da Argentina ao Oscar de melhor filme internacional do ano de 2025, conta a história de Remo Manfedrini, um jóquei que caiu em desgraça por conta de seu vício em álcool e drogas. Após um acidente o levar para o hospital, Remo entra em contato com seu reprimido alter ego feminino, assim, acompanhamos sua transformação completa em Dolores, enquanto sua esposa e outros personagens lidam de diferentes maneiras com a situação.

    Explicando desta maneira, não é possível transmitir todos os absurdos, narrativos e visuais, presentes em Matem o Jóquei, a produção inclui: um poderoso chefão argentino que segura um bebê diferente a cada vez que aparece, personagens literalmente subindo pelas paredes sem a menor explicação e uma cena de dança que remete à cena de John Travolta e Uma Thurman em Pulp Fiction (1995).

    joquei

    Úrsula Corberó e Nahuel Pérez Biscayart dançam em cena de “Matem o Jóquei”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    A audiência que tentar acompanhar uma narrativa conexa e coesa, sairá decepcionada pois a própria construção narrativa da produção, nos leva a aceitar absurdos constantes e somente embarcar na viagem.

    Nahuel Pérez Biscayart, está excelente no papel de Manfredini/Dolores, porém, o verdadeiro brilho da produção se encontra em Úrsula Corberó, a Tokyo da série La Casa de Papel, como sua esposa. Úrsula abraça o absurdo de uma forma que se torna natural, a apatia que sua personagem apresenta, é a epítome de um teatro do absurdo visto em peças teatrais do gênero como “Esperando Godot” de Becket e “Rozencrantz e Guildenstern estão mortos” de Tom Stoppard.

    O filme é bizarro, porém, este se torna o seu maior atrativo, principalmente em quesitos cômicos, algo que os argentinos sabem fazer muito bem, existem personagens do filme que se encaixam no papel de confundir o espectador, o cowboy que persegue Remo é um exemplo, porém, sua utilidade é bem maior ao considerarmos o símbolo másculo do cowboy, em contrapartida com Manfredini, que encontra propósito em sua vida a aceitar sua personalidade como Dolores.

    Levando em conta que Matem o Jóquei está concorrendo a uma vaga no Oscar 2025, também disputada por favoritos como A Garota da Agulha, a produção pode apresentar dificuldades na competição por conta de sua construção onírica, algo não favorecido nas últimas edições da premiação, porém, Matem o Jóquei é um filme que merece muito apreço, principalmente por conta de sua amplitude de temas psicológicos e coragem de manter um absurdo constante, visto por poucos filmes atuais.

    Leia mais:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Vera e o Prazer dos Outros toma a audiência como refém

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Vera e o Prazer dos Outros toma a audiência como refém

    Na medida que assistimos à Vera e o Prazer dos Outros, nos percebemos cúmplices de sua protagonista.

    Dirigido por Romina Tamburello e Federico Actis, Vera e o Prazer dos Outros é um coming of age argentino que retrata a descoberta sexual de Vera, uma jovem de 17 anos que após roubar as chaves do apartamento que sua mãe tenta vender, começa a alugar o apartamento para jovens transarem e começa a desfrutar de seu prazer oculto: escutar os atos sexuais de outras pessoas.

    Segundo o dicionário, voyeurismo é uma curiosidade patológica por tudo que é íntimo e privado. Vera desfruta deste prazer com maestria, porém, sem percebermos, ao acompanharmos sua jornada a audiência se torna voyeur na mesma medida.

    Na medida que Vera se torna cada vez mais aberta a novas descobertas sexuais, Romina e Federico fazem uso de planos cada vez mais próximos, terminando na sequência chave da produção: uma longa cena de sexo à três, filmado em plano sequência, impedindo o público de desviar o olhar da ação.

    vera 2

    Cena de “Vera e o Prazer dos Outros”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    Vera e o Prazer dos Outros é um filme lento, uma degustação de momentos, porém, deve-se destacar o trato de ter uma protagonista bissexual em um coming of age, algo ainda raro dentro do cinema atual. Existem coming of age com protagonistas gays, como Me Chame Pelo Seu Nome; protagonistas lésbicas, como em Bottoms; e obviamente de héteros, como 95% de comédias adolescentes desde os anos 80, porém, não me recordo de um coming of age com protagonista bissexual feito de modo tão delicado e ao mesmo tempo tão corajoso, a ponto de mostrar cenas de masturbação da protagonista para demonstrar o seu crescimento psicológico.

    Vera não é uma protagonista nobre, diversas vezes temos raiva de sua infantilidade, porém, é uma personagem complexa, principalmente ao entendermos a sua vida familiar que inclui um pai ausente, tanto em sua vida quanto em grande parte do filme, apresentando pouco destaque, e sua mãe, uma workaholic que gerencia inúmeros apartamentos para locação e trai o marido com seu chefe.

    Uma das cenas mais impactantes de Vera e o Prazer dos Outros, ocorre quando o voyeurismo de Vera se volta contra ela mesma, na medida que pega sua mãe traindo o pai, e não apresenta a oportunidade de escapatória, assim, o público se isola no armário junto com ela e observa somente por uma fresta uma cena angustiante.

    Vera e o Prazer dos Outros é uma produção sensorial, principalmente em questão de tato, por meio de planos detalhes, a plateia desfruta até mesmo do tecido da colcha de veludo de Vera, assim, sentimos estes prazeres ocultos na mesma medida, para enfim, no último plano do filme receber um olhar gratificante da protagonista por meio da quebra da 4º parede, e um reconhecimento de fim de jornada.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | A Garota da Agulha mostra o lado obscuro da maternidade

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | A Garota da Agulha mostra o lado obscuro da maternidade

    Dirigido por Magnus Von Horn, A Garota da Agulha não é para os fracos de coração.

    Se passando no período entre guerras, A Garota da Agulha acompanha Karoline, uma jovem operária que se encontra desempregada, grávida e desesperada em uma Copenhague do século XX que se encontra ainda mais claustrofóbica por conta da fotografia em preto e branco.

    Quando Karoline, Vic Carmen Sonne, se torna ama de leite de Dagimar, uma carismática gerente de uma agência de doação clandestina, o que se inicia como um suspiro para a jovem, liberta o seu pior, quando descobre o verdadeiro segredo da clínica de Dagimar, levando-a refletir sobre a própria posição dentro do senso de comunidade.

    A Garota da Agulha é um filme sobre maternidade, principalmente as mães que nem sempre desejaram seguir este destino, porém, aceitam o papel por pura obrigação, trazendo infelicidade tanto para a criança quanto para a própria mulher que deveria agir como um símbolo de proteção e cuidado.

    A produção apresenta diversos bebês, todos chorando de modo insistente e alto, algo que incomoda até mesmo os mais preparados. É desta forma que o horror do filme é construído, não por momentos assustadores, mas, por momentos de desconforto que se revelam de maneiras distintas: interações artificiais; o grotesco no corpo humano sendo demonstrado pelo ex marido de Karoline que foi ferido na guerra; uma questão mais estética com paralelos que o filme apresenta com movimentos de vanguarda como o surrealismo e filmes como Um Cão Andaluz de Luiz Buñuel.

    Garota da Agulha

    Vic Carmen Sonne como Karoline em cena de “A Garota da Agulha”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    Não existe nada mais assustador do que a frase “Baseado em Fatos Reais”, e o filme A Garota da Agulha usa isso a seu favor, discutindo atos tão horrendos, durante um período tão difícil para a humanidade, principalmente para as mulheres, e que dentro do contexto do filme acabam sendo justificados por meio de uma frase de Dagimar: “O mundo é um lugar horrível, mas nós precisamos acreditar que não é tanto assim”.

    A Garota da Agulha pode ser resumido fazendo uso somente desta frase, os atos que fazemos em nosso dia a dia, são atos que seguem a nossa própria bússola moral, no caso de Dagimar, a bússola diz para cuidar das mães que não desejam seus filhos, prometendo um lar para eles, porém, com um outro destino bem mais obscuro em mente, algo que Karoline não conseguiu aguentar, e muitas pessoas também não, porque na medida que enxergamos a verdadeira face da humanidade, se não acreditarmos em algo melhor, nada mais consegue nos levantar.

    A Garota da Agulha foi escolhido pela Dinamarca para representar o país na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional do ano de 2025.

    Leia também:

  • CRÍTICA | “De Volta à Alexandria” é um convite para uma viagem sobre humanidade

    CRÍTICA | “De Volta à Alexandria” é um convite para uma viagem sobre humanidade

    Com ritmo próprio e tons de humor e leveza, “De Volta à Alexandria” (2023) ressignifica o conceito de filme de estrada.

    De volta à Alexandria (2023) te convida para uma viagem pelo Egito e por temas universais que se materializam em torno da jornada de sua protagonista. Ao receber a notícia de que sua mãe Fairouz (Fanny Ardant) está enfrentando problemas de saúde, Sue (Nadine Labaki), que vive há muitos anos no exterior, terá que retornar à sua cidade natal no Egito e lidar com todas as questões mal resolvidas de seu passado.

    O longa do diretor e roteirista Tamer Ruggli constrói, através da jornada de retorno e autoconhecimento vivida por Sue, uma narrativa sobre temas universais como família, maternidade, separação de classes e embates geracionais, explorando um momento da vida das personagens que exprime ao máximo sua humanidade: a iminência da morte, e o legado que fica para os que permanecem vivos.

    Este embate entre vida e morte, passado e presente, é exposto principalmente nos momentos de total alucinação da protagonista, que fantasia diálogos entre si própria e uma versão idealizada e ainda saudável de sua mãe, com participação especial de uma versão de si mesma na infância.

    Através de cenas com duração maior do que o cinema comercial se habituou nos últimos anos, os diálogos entre mãe e filha trazem à tona as mágoas que ambas carregaram ao longo de sua relação, como a mãe que gostaria de ter tido um filho menino e a filha que abandonou seu país para afastar qualquer semelhança com a vida que sua mãe havia construído.

    "De Volta à Alexandria" (2023) | Tipimages Productions

    “De Volta à Alexandria” (2023) | Tipimages Productions

    A duração do filme transcorre de maneira surpreendentemente muito efetiva e trabalha com humor e leveza mesmo os episódios mais traumáticos vividos pelas personagens. Nesse sentido, vale o destaque para a cena em que Sue fantasia com todas suas antepassadas mulheres que já faleceram e aguardam, à mesa do jantar, a chegada de sua mãe para juntar-se ao clã fúnebre. 

    O filme, de narrativa simples mas sofisticado uso da linguagem cinematográfica, surpreende ao criar personagens ao mesmo tempo caricatas e multidimensionais, que despertam uma certa empatia compulsória mesmo para o espectador da mais distante cultura. É o caso da tia de Sue que, entre o apagar de um cigarro e o acender do próximo, tem o hábito de demonstrar carinho por sua sobrinha através de diversos foras, palavrões e grosserias (quem não tem uma tia ou tio rabugento desse na família?).

    É muito curioso e reconfortante enxergar em outras culturas alguns dos mesmos dilemas vividos por pessoas do nosso convívio, dialogando sobre temáticas que transcendem as barreiras culturais de cada país ou região e é nessa proposta que o filme atinge seus maiores êxitos. A produção parece usar aqui do conceito do cinema enquanto espelho da sociedade, mas não busca refletir esta realidade através necessariamente de uma estética realista,que mimetiza uma representação fiel do real. 

    "De Volta à Alexandria" (2023) é um convite para uma viagem sobre humanidade

    “De Volta à Alexandria” (2023) | Tipimages Productions

    Pelo contrário, na verdade o longa utiliza-se da linguagem audiovisual para trazer reflexões através de alucinações e diálogos apenas imaginados por Sue, numa representação da psique humana muito mais poética do que realista. Em sua viagem de retorno à Alexandria, Sue reconecta-se com o passado, com seus familiares e sua cultura. Mas é através da jornada interna que a personagem descobrirá a verdadeira redenção de sua relação com a mãe e, por consequência, consigo mesma.

    Em alguns momentos, o filme parece emular o que nos habituamos a rotular como  roadmovie, com algumas cenas de estrada, um chamativo veículo automotivo e trilha sonora bem marcante. Mas é, sem dúvida, na linguagem poética que reside os maiores acertos do longa, convidando o espectador a embarcar ao lado de Sue por estas duas viagens simultâneas, a da estrada e a interna.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | A Herança é um futuro promissor para o terror nacional

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | A Herança é um futuro promissor para o terror nacional

    Dirigido por João Cândido Zacharias, A Herança usa arquétipos tradicionais do gênero para construir algo raro no cinema nacional

    A Herança conta a história de Thomas, um jovem que vive em Berlim com seu namorado Beni, e que deve retornar ao Brasil após a morte da mãe. Ao descobrir que é o único herdeiro de uma casa de campo da avó que nunca chegou a conhecer, Thomas e Beni decidem passar um tempo no lugar, porém, enquanto Thomas é cativado cada vez mais pelo ambiente, Beni sente que algo está muito errado.

    Quando trabalhamos com o cinema clássico, acabamos seguindo algumas normas tradicionais de cada gênero específico: romance, comédia, terror, etc. Todos estão sujeitos a arquétipos seja de personagens ou de acontecimentos, para assim, tornar o produto mais eficiente dentro de uma ordem mercadológica e ser melhor aceito tanto pelo público, quanto pela crítica.

    O filme A Herança, não foge disso. Se inspirando em filmes italianos e filmes de terror B norte americanos, a produção apresenta marcas tradicionais do gênero de terror que foram estabelecidas desde os seus primórdios, seja uma seita que pretende ressuscitar algo ou alguém, uma casa mal conservada, escura e suja, um casal que se encontra metido dentro do processo, sendo um deles uma espécie de chave/sacrifício humano para que uma profecia se cumpra, avisos óbvios que o protagonista ignora, entre outras.

    A Herança

    Cena de “A Herança”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    O que faz o filme de João Cândido, um ávido consumidor de filmes do gênero, se destacar dentro do meio, é o roteiro que não tem medo de seguir o livro de regras que fizeram outros filmes um sucesso, uma fotografia limpa e sóbria que se baseia muito em uma contradição de chiaroscuro, muito presente em obras de arte barrocas, algo que serviu de inspiração inclusive para o setor de design de produção.

    Muitos dos atores nunca haviam feito filmes de terror antes de A Herança, alguns até mesmo apresentam medo de filmes deste gênero, porém, o elenco é composto, entre outros nomes de peso, por Gilda Nomacce, atriz que já trabalhou em outros filmes de terror nacional como As Boas Maneiras (2017), assim, apresentando mais experiência e assustando parte do elenco e produção ao colocar uma caixinha de música de terror durante uma leitura do roteiro.

    A Herança derrapa no terceiro ato ao tentar explicar e mostrar mais do que deveria. Grande parte da tensão ao longo da produção girava em torno do mistério, ao criar um absurdo, principalmente na parte principal do ritual da seita, o filme perde o seu valor e somente fica bizarro, porém, mesmo com este tropeço, A Herança trilha um caminho de sucesso para o cinema de terror no Brasil.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | The Outrun lida com a dificuldade em se tratar vícios

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | The Outrun lida com a dificuldade em se tratar vícios

    Com Saoirse Ronan em seu melhor papel até agora, The Outrun conta a história de uma jovem e seu vício em álcool

    Clarissa Pinkola Estés conta no capítulo 9 de seu livro: “Mulheres que correm com Lobos”, a lenda das mulheres foca, nele, é discutido um regresso necessário que a mulher precisa ter para com sua pele e principalmente com sua alma, tendo que buscar um lugar de repouso ao longo de sua vida.

    Em The Outrun, a diretora Nora Fingscheidt, inicia a produção fazendo um paralelo entre esta lenda e sua protagonista Rona, uma jovem de 29 anos, que após 10 anos em Londres, retorna para sua casa nas ilhas Órcades, buscando recuperação após chegar ao fundo do poço por conta de seu vício em álcool.

    Solitária na ilha, lidando com o pai doente, a mãe religiosa, e ninguém de sua idade, Rona reflete sobre os acontecimentos que a levaram até lá. De forma não cronológica, acompanhamos diversos momentos de sua vida, seja sua infância vendo os pais brigarem, seu relacionamento amoroso em Londres que foi arruinado por conta de seu alcoolismo, e principalmente sua busca por melhoras.

    the outrun

    Saoirse Ronan em cena de “The Outrun”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    The Outrun é um filme lento. Por meio de uma voz off constante, temos conhecimento dos pensamentos internos de Rona, algo que fica cansativo após um tempo. Saoirse Ronan está em todas as cenas da produção e transmite uma emoção diferente em cada uma, mesmo com um sorriso, enxergamos uma mulher que busca se libertar desta pele que a prende e simplesmente ser livre, porém, é impedida pelo seu próprio remorso.

    Em 2017, Saoirse Ronan estrelou o filme Lady Bird de Greta Gerwig, por mais curioso que possa parecer, eu enxergo The Outrun como uma sequência extraoficial, na medida que ambos os filmes lidam com amadurecimento e são filmes poéticos sobre mulheres que buscam a liberdade.

    A maior discussão dentro de The Outrun, algo que comentei após o fim da sessão com duas mulheres que conheci, foi a veracidade e o cuidado com que o vício em álcool é abordado dentro da produção, apesar do contexto, o filme traz esperança, ao final, Rona não vira uma foca, porém, de certo modo consegue o domínio sobre a natureza, algo que ela sempre diz que conseguia fazer.

    Rona entra em paz consigo mesma, os sentimentos que ela acreditava que somente o álcool poderia lhe dar, são encontrados em outros lugares, seja auxiliado por um morador da ilha, sóbrio à 12 anos e que apresenta grande empatia com a personagem, ou o apoio materno após ambas terem batido de frente diversas vezes ao longo do filme.

    Por meio de poesia, alegorias e um final esperançoso, The Outrun traz o conforto que não importa quanto tempo passe, sempre é possível se tornar alguém melhor e vencer as desavenças que o mundo nos joga diariamente.

    Leia também:

  • CRÍTICA | A CW sonhava em fazer algo do nível de Superman e Lois (3º Temporada)

    CRÍTICA | A CW sonhava em fazer algo do nível de Superman e Lois (3º Temporada)

    Superman e Lois entrega uma temporada madura sobre um tema difícil que poderia ter sido trabalhado de modo superficial, mas recebeu o drama necessário para se destacar no gênero de super heróis.

    Depois de já ter vencido um irmão de Krypton e enfrentado o Mundo Bizarro trazido pela Parasita, o que poderia ser uma luta maior do que essas para Clark Kent? A descoberta de sua esposa estar com câncer e de que o grande vilão da temporada, mesmo cometendo atrocidades, apenas está buscando a cura para essa doença.

    Partindo disso, a temporada avança com o assunto de um jeito totalmente melodramático, deixando de lado a pegada mais super heroica, com vilões da semana, que vale dizer, esse seriado já não tinha muito disso, mas que por 11 episódios fica inteiramente focada nesse problema sem se perder, fazendo a trama do inimigo Bruno Manhenheim ganhar cada vez mais foco e interesse com o decorrer da temporada, já que no inicio aparentava ser apenas mais um na vasta coleção de antagonistas esquecíveis. Com isso, é um vilão que ganha força não por ter poderes, mas por mexer com máfia, com dinheiro, onde o Superman não vai poder agir muito com a capa e sim com seu lado jornalístico. Ainda que não seja tão aproveitado como poderia, é bem legal jogarem para um caminho tão diferenciado assim.

    Superman e Lois

    Superman e Lois | Hbo Max


    Gosto bastante de como todas as tramas parecerem convergir mais, seja por geral saber a identidade do Clark ou pelas ações de Bruno alcançarem Smallville, ainda que algumas coisas mais fúteis como o novo par romântico do Kyle ou a discussão interminável entre Sarah e Jordan existam, nunca acho que atrapalham ou incomodem o suficiente para tirar a graça de ver a série. Basicamente é a vida de cada um acontecendo ali e a produção busca não deixar ninguém de lado. Agora ver todo o lado do John Henry e a Natalie se focarem para com o que Bruno fez, torna mais interessante e viável suas presenças.

    A única pena que sinto é por alguns temas ficarem apenas para um episódio, seja a raiva de John a ponto de quase virar um assassino ou do Jordan querer a atenção de ser herói. São temáticas tão humanas, que poderiam levar a um limite, a serem mais bem trabalhadas, e acabam não passando muito daquilo que foi visto, por vezes soando aleatório. Ainda que não tenha sido e isso é um ponto a se destacar, a temporada como um todo trabalha por episódio certas coisinhas tão simples, mas que vão ganhando um entorno forte no futuro e faz completo sentido ao final, porque já havia tido uma citação antes. Como por exemplo, a Sarah no final da temporada se sentindo vazia, o que preocupa seus pais e leva a falar sobre um tema pesado. A construção para isso foi vindo bem fluida durante a temporada, de um jeito que ao encostar no limite levou a esta reação.

    Agora, nada chega aos pés do modo como Superman e Lois trabalhou o câncer, o medo de perder alguém e o processo para lutar contra a doença. Absolutamente por episódio, todos os temas são abordados, indo do Clark entrar num grupo de apoio para falar como se sente para a Lois demonstrar os receios de perder sua feminilidade e o possível interesse do marido por ela. É tão dramático e tão bom, que o ponto alto da série se direciona para os episódios 2, 7 e 9. O 2 é quando revela o problema, o cuidado para esse momento, já indicando com o inicio focado no que Lois está sentindo, mas guardando pra si. O 7 é provavelmente o melhor, porque mostra toda a família sentindo a dor e o receio para com o que sua mãe tem, onde o novo ator do Jonathan (Michael Bishop) mostra que não só se encaixou no papel, mas praticamente fez valer a troca de atores. E o 9 é um maravilhoso foco na relação Lois e Clark, onde um certo vestido é abordado e o final desse capítulo trabalha com tanta sensibilidade o futuro do casal, que fica difícil não se emocionar.

    Sério, como foi bom ver não apenas o Superman com medo, enfrentando uma batalha que não é dele e ele não pode vencer com seus poderes, mas como foi maneiro ver um casal clássico dos quadrinhos ser aprofundado do modo que foi, a ponto de ser fácil a melhor versão do casal que já tivemos no audiovisual, com a química tão clara de um marido e sua esposa. Difícil pensar que na vida real Tyler Hoechlin e Bitsie Tulloch não são casados. E nessa temporada, ambos dão o seu melhor em atuação, não precisando de choros e reações exacerbadas para transmitir todos os pesares que uma doença provoca em uma família e num relacionamento.

    Superman e Lois

    Superman e Lois | Hbo Max


    O maior incômodo sentido vem próximo ao final, ao buscar introduzir o clássico antagonista Lex Luthor, a série apresenta flashbacks para deixar bem claro que tipo de homem ele é, muito mais ameaçador pela força e medo que causa, do que pelo seu modo egocêntrico pela inteligência que normalmente tem nas adaptações, e mesmo que se trate de uma série de super heróis, principalmente olhando em retrospecto uma temporada que se colocou mais ao chão para trabalhar bem os seus temas, acaba destoando demais, de modo quase vergonhoso, ver o homem ir andando da prisão até a casa dos Kent apenas para mostrar o quão assombroso ele é, além da forte presença de uma trilha de rock para engrossar a ideia. A sensação final foi de que dava pra passar a mesma sensação sem ficar tão galhofa.


    Todavia, pelo menos e felizmente, o final da temporada de Superman e Lois bruscamente se joga para um caminho, conectando determinadas tramas, deixando diversos personagens resolvidos, para todos se prepararem pelo grande acontecimento que aguarda o mundo, pois um novo vilão está chegando graças às mãos de Lex e ainda que os efeitos visuais de uma produção televisiva não dêem conta do recado, o confronto final consegue ser bom o suficiente para deixar qualquer espectador na ponta da cadeira querendo mais.

    Veja também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | As Mulheres da Sacada é comédia francesa no melhor estilo Almodóvar

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | As Mulheres da Sacada é comédia francesa no melhor estilo Almodóvar

    As Mulheres da Sacada usa a comédia absurda para criticar a visão masculina

    Dirigido por Noémie Merlant, Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), Mulheres da Sacada começa com uma óbvia referência à Janela Indiscreta (1954), porém, na medida que avança e ocorrem cada vez maiores absurdos, o projeto se inspira em um diretor que recorria a muitos destes absurdos durante o inicio de sua carreira: Pedro Almodóvar.

    Se inspirando em filmes como Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), a produção conta a história de 3 mulheres: A cam girl Ruby, Souhelia Yacoub, a atriz Elise, interpretada pela própria Noémie Merlant, e a escritora em crise Nicole, Sanda Codreanu. Três mulheres bem diferentes entre si, porém, que se completam dentro das loucuras do filme.

    É impossível uma crítica de As Mulheres da Sacada sem spoiler, na primeira cena uma dona de casa mata seu marido abusador com uma pá, dando o tom para toda a narrativa que se seguirá.

    O filme se desenrola após o trio ir beber no apartamento de um atraente vizinho, dosando tensão e comédia, a audiência percebe que algo está errado, seja pela fotografia escura em contraponto à luz que havia no inicio, ou ao sentimento de claustrofobia que é apresentado. Após o vizinho abusar sexualmente de Ruby, ela acidentalmente o mata, levando as três mulheres a darem um jeito no corpo.

    mulheres 2

    Ruby, Elise e Nicole em cena de “As Mulheres da Sacada”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    O interessante de As Mulheres da Sacada, é que se inicia como um drama, então vira comédia, então thriller e se encerra como uma junção dos três, com uma pitada de realismo fantástico na forma de fantasmas de abusadores mortos, o que parece muita coisa, se torna um ode à amizade feminina e principalmente ao corpo feminino, algo que o cinema, ambiente majoritariamente masculino, falhou em retratar diversas vezes.

    Noémie Merlant usa Mulheres da Sacada para discutir uma male gaze cinematográfica que persiste até hoje, apresentando diversas cenas de nudez ao longo da produção, porém, todas normalizadas e vistas de modo natural. Consultas à ginecologista, flerte com a terra da planta, masturbação com a alça da cadeira, tudo isto e mais está presente no filme de Merlant de modo poético e brilhantemente filmado.

    O design de produção faz um trabalho excelente ao compor suas três protagonistas, o estilo de cada uma é marcada em suas roupas. A fotografia varia de uma escuridão, até um brilho natural que elas apresentam e o filme é acompanhado, em sua totalidade, por uma trilha sonora que envolve um coral que muda de entonação ao longo do filme, trazendo diferentes sentimentos.

    Se inspirando em grandes diretores de tensão e comédia, como Alfred Hitchcock e Pedro Almodóvar, Mulheres da Sacada se torna um filme necessário no mundo de hoje, intercalando graça e comédia que leva uma sala inteira a rir em harmonia, com cenas bem mais tensas que nos fazem refletir sobre porque rimos anteriormente. Esta quebra ocasionada pelo roteiro e direção de Noémie Merlant que transforma a produção em algo único.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Virginia e Adelaide dá destaque a mulheres apagadas

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | Virginia e Adelaide dá destaque a mulheres apagadas

    Roteirizado por Jorge Furtado, Virginia e Adelaide conta a história de duas importantes psicanalistas brasileiras, pouco conhecidas pelo grande público.

    Provavelmente um dos curtas nacionais de maior sucesso é “Ilha das Flores”, dirigido por Jorge Furtado e com reconhecimento mundial, a produção se tornou um marco, sendo estudado e mostrado em diversas, escolas, faculdades, como um exemplo de curta metragem.

    Virginia e Adelaide relembra esta estética apresentada no curta, ao retratar a história da primeira psicanalista brasileira e sua professora, interpretadas por Gabriela Correa e Sophie Charlotte.

    O filme se inicia como uma ficção, vira um documentário ao retratar imagens de época e reais das personagens que as inspiraram: Virginia Bicudo e Adelaide Koch, e na medida que o filme avança, a estética muda diversas vezes, passando também por vídeo arte e experimental em determinados momentos.

    virginia

    Gabriela Correa e Sophie Charlotte em cena de “Virginia e Adelaide”- Divulgação Festival do Rio

    Virginia e Adelaide se torna algo único por conta do carisma de suas protagonistas e por dois carros chefes: o roteiro e a montagem. Jorge Furtado dirige o filme junto com Yasmin Thayná, esta dupla traz vida a um filme que poderia ser chato caso não trabalhassem tanto com a estética cinematográfica.

    O filme levou à gritos de “Viva o Cinema Brasileiro” em seu começo, choros de parte da audiência e aplausos merecidos ao final, não somente por ter executado um interessante filme nacional, mas, por dar voz à duas mulheres que a maioria esmagadora da população brasileira não conhece, apesar de serem tão importantes para a psicanálise como um todo.

    Na medida que acompanhamos o crescimento desta amizade de Virginia e Adelaide, o filme se torna cansativo em seu terceiro ato, apesar de ainda apresentar discussões que discute tanto o tempo gravado do Brasil anos 40, aonde se passa o filme, quanto o Brasil atual, que continua racista e preconceituoso da mesma forma.

    Leia também:

  • CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | A Hora do Orvalho junta drama e comédia em um filme conforto

    CRÍTICA (FESTIVAL DO RIO) | A Hora do Orvalho junta drama e comédia em um filme conforto

    Dirigido por Marco Risi, A Hora do Orvalho apresenta uma reflexão sobre o tempo e o que aprendemos com ele.

    A Hora do Orvalho retrata a história de Carlo, um jovem que após ocasionar um acidente, deve fazer trabalho comunitário em uma casa de repouso para idosos, assim, convivendo com diversos personagens e aprendendo sobre humildade ao longo do processo.

    Apesar da premissa já ter sido vista anteriormente em diversas produções, o que torna A Hora do Orvalho especial, é a poesia trazida pelas suas cenas, unificando na mesma cena um sentimento de felicidade e ao mesmo tempo de melancolia, seja um paciente com alzheimer dançando feliz ao som de “Riderá” de Little Tony ou uma alegre guerra de bolas de neve com um triste fim.

    Na palestra inicial antes do filme, com presença do diretor Marco Risi e a atriz Lucia Rossi, o público soube que a ideia original do filme surgiu faz 20 anos, inicialmente, Marco Risi se identificava com os personagens mais jovens como Carlo, porém, atualmente se identifica mais com os personagens mais velhos como Dido, uma união de Marco com o seu próprio pai, construindo um dos personagens mais ricos de toda a produção.

    Cada um dos residentes da casa de repouso apresenta algo que o destaca, seja o coronel do exército que não se dá bem com o filho, as irmãs que não se separam, o sedutor, o romântico, entre outros. Porém, o ponto forte do filme é a relação de Carlo com Dido, um fotógrafo que sempre desejou ver leões. Dido atua como mentor do jovem, levando-o a criar uma empatia e o ensinando a lidar com a culpa que sente.

    A Hora do Orvalho

    Os residentes da casa de repouso comemoram o natal em “A Hora do Orvalho”- Foto divulgada pelo Festival do Rio

    O grande destaque de A Hora do Orvalho são as interações entre estes personagens, sempre de forma singela e extremamente poética, apesar de alguns pequenos furos no roteiro, ao final, o projeto é lindo, uma lembrança que me veio foi o filme “Os Rejeitados”, principalmente por ambos serem filmes do século passado e lidarem com pessoas amarguradas, geralmente invisíveis para grande parte do mundo, porém, que descobrem um próprio brilho.

    A mensagem que tiramos de A Hora do Orvalho, além de boas risadas e lágrimas, é que tudo passa, e principalmente: tudo muda. Relações, sentimentos, vontades, ambições, porém, apesar de tudo isso, no fundo mantemos quem nós somos desde o começo, precisando de um auxilio e de um abraço amigo para realmente alcançarmos nosso potencial, algo que acontece para a grande maioria dos personagens da produção.

    Leia também:

  • CRITICA | Sem a tensão do primeiro, O Poço 2 falha em conceitos básicos

    CRITICA | Sem a tensão do primeiro, O Poço 2 falha em conceitos básicos

    Sequência do sucesso da NETFLIX, O Poço 2 passa longe da tensão claustrofóbica de seu antecessor

    Lançado durante a pandemia de COVID 19, “O Poço” se tornou um dos maiores sucessos NETFLIX por conta de sua premissa original e seu clima de tensão, que leva à discussão sobre a crueza humana dentro de uma prisão vertical que limita os prisioneiros a lutarem pela coisa mais básica de todas: comida.

    Lançada em um outro contexto, sua sequência nos leva novamente à mesma prisão, aonde encontramos novos personagens que não chegam aos pés do carisma de Trimagasi, personagem que retorna no filme, porém, sem a mesma potência que apresentava.

    Sem perder tempo explicando as regras já apresentadas em seu antecessor, algo que faz falta em diversos momentos, a sequência discute a força e o perigo do fanatismo religioso e deixa a discussão sobre capitalismo para o segundo plano.

    Dentro da prisão, somos introduzidos à Perempuán, uma mulher que entra na prisão para refletir sobre um ato acidental que causou, interpretada por Milena Smit, e Zamiatin, um enorme homem que não apresenta tanta força quanto deveria ter, Hovic Keuchkerian, além de outros personagens que aparecem no primeiro filme, porém, após 5 anos de seu lançamento, acabam sendo esquecidos por grande parte do público e enxergados como novos.

    O poço 2

    Perempuán e Zamiatin em cena de “O Poço 2”- Divulgado pela Netflix

    O trailer de “O Poço 2” apresentava uma forte atmosfera de tensão, porém, o filme em si falha justamente em seu ritmo, com diversos furos de roteiro que contradizem mandamentos estabelecidos como canônicos durante o primeiro filme, a produção tenta ocasionar reviravoltas e surpresas ao público por meio de acontecimentos chocantes, mas, falha em sua execução. Sua cena final é o maior exemplo disso, aonde aprendemos que cronologicamente o filme se passa antes do primeiro, assim, abrindo margem para mais sequências que não chegarão à tensão do primeiro filme.

    Apesar do retorno de Galder Gaztelu-Urrutia na direção, a produção fracassa em regras básicas de narrativa, seja em personagens, construção de tensão ou de espaço, que não se apresenta tão claustrofóbico e isolador quanto o primeiro filme, assim, fazendo com que até mesmo seu antecessor, que já não é tão forte narrativamente, se torne ainda mais fraco.

    Leia também:

  • CRÍTICA | Coringa: Delírio a Dois é um bom filme, mas desafina em diversos quesitos

    CRÍTICA | Coringa: Delírio a Dois é um bom filme, mas desafina em diversos quesitos

    Delírios musicais e atuações de Pheonix e Gaga tentam salvar a continuação de Coringa de Todd Phillips.

    Coringa“, lançado em 2019, foi um marco nas produções baseadas em quadrinhos, centrando-se no icônico vilão do Batman. Com uma abordagem realista, o diretor Todd Phillips criou um estudo de personagem único e, ao mesmo tempo, uma excelente história de origem. O encerramento impecável do primeiro filme tornava uma sequência algo quase impensável. No entanto, chega agora aos cinemas “Coringa: Delírio a Dois”, uma ousada continuação que tenta, mas enfrenta dificuldades para desenvolver suas ideias e avançar seus personagens, apesar da fotografia impressionante, dos números musicais isolados e das atuações notáveis de Joaquin Phoenix e Lady Gaga.

    Todd Phillips retorna à direção e colabora no roteiro com Scott Silver, contando a história do período de prisão e julgamento de Arthur Fleck (Phoenix) após os crimes que mergulharam a cidade no caos e transformaram seu alter ego, o Coringa, em uma figura de reverência. Nesse período, ele conhece Lee (Gaga), uma paciente que está presa com Fleck, e juntos compartilham momentos de insanidade musical. As tensões aumentam à medida que o veredito final se aproxima, e surgem dúvidas sobre o relacionamento do casal após algumas verdades serem reveladas.

    Os atores do primeiro filme retornam em boa forma, e as novas adições ao elenco também brilham. Joaquin Phoenix entrega mais uma atuação intensa, agora com uma pegada mais física, incluindo números musicais onde a dança se destaca. Lady Gaga, como Lee (uma versão da Harley Quinn), aproveita ao máximo o material, tanto nas cenas musicais quanto nos momentos de ternura com Phoenix. No entanto, sua personagem carece de profundidade suficiente para causar um impacto mais forte. Em contrapartida, os breves retornos de Zazie Beetz e Leigh Gill são bem-vindos e enriquecem as cenas que refletem os atos sombrios do protagonista.

    CRÍTICA | Coringa: Delírio a Dois não coloca um sorriso feliz na cara

    Coringa: Delírio a Dois | Warner Bros.

    O maior problema do filme reside no roteiro. O desenvolvimento dos personagens é superficial. Em alguns momentos, pondera sobre a inocência de Fleck, enquanto em outros glorifica o Coringa e seus atos hediondos, criando frustração com a indecisão narrativa. Essa oscilação também afeta a Arlequina de Lady Gaga, que pouco se assemelha à icônica Harley Quinn, criada por Bruce Timm e Paul Dini na clássica “Batman: A Série Animada”.

    Por outro lado, o trabalho de fotografia de Lawrence Sher, que retorna à equipe, é excepcional, utilizando a iluminação para destacar o amor entre os insanos em meio ao caos de Arkham. Os números musicais são visualmente cativantes, remetendo a produções clássicas com cenários pintados, como “O Mágico de Oz”. Essas cenas estão entre os momentos mais divertidos do filme, enriquecidas por uma excelente seleção de músicas clássicas, como “That’s Entertainment” e “When You’re Smiling”. Contudo, a trilha sonora decepciona, reciclando muitas, se não todas, as composições anteriores da vencedora do Oscar, Hildur Guðnadóttir.

    “Coringa: Delírio a Dois” tem ideias ousadas ao usar o musical para contar sua história, mas falha em desenvolver seus personagens de maneira satisfatória. Embora os números musicais ofereçam deleites visuais, nem as atuações brilhantes de Joaquin Phoenix e Lady Gaga conseguem apagar os erros de um filme que prometeu muito, mas entregou pouco.

  • CRÍTICA | Cidade de Deus: A Luta Não Para é um prato cheio para os críticos

    CRÍTICA | Cidade de Deus: A Luta Não Para é um prato cheio para os críticos

    Nova série da HBO, Cidade de Deus: A Luta Não Para (2024 – ) segue causando polêmica ao final de sua 1ª temporada


    Sempre que a continuação de alguma obra cinematográfica aclamada é anunciada, o público automaticamente se divide em duas correntes: entusiastas que, por serem fãs da obra original, aguardam ansiosamente a expansão de tal universo; e conservadores, que de alguma forma entendem que a nova produção poderá estragar ou até mesmo apagar seu tão querido filme de estimação. No caso da série “Cidade de Deus: A Luta Não Para”, não foi diferente.

    A série, nova produção da HBO, que lançou o último de seus 6 episódios neste domingo (29), traz de volta os mesmos personagens do grande clássico da Retomada no cinema brasileiro, “Cidade de Deus” (2022), do diretor Fernando Meirelles. O filme é adaptação do livro homônimo, escrito por Paulo Lins e lançado em 1997 e tornou-se um marco dentro do audiovisual brasileiro, alcançando grande sucesso de público e crítica e acumulando prêmios, bilheterias e reproduções mundo afora, se consolidando como um dos filmes brasileiros mais conhecidos internacionalmente.

    "Cidade de Deus: A Luta Não Para" | HBO

    “Cidade de Deus: A Luta Não Para” | HBO

    Tecnicamente falando, são diversos os aspectos que fizeram o filme atingir o status de obra-prima, como a montagem brilhante de Daniel Rezende, a utilização de atores não-profissionais no elenco, em sua maioria residentes da comunidade retratada, e a polêmica porém eficaz preparação de elenco de Fátima Toledo. Temos ainda a premiada parceria entre a lindíssima direção de fotografia de César Charlone, costurada pela sempre sensível e fortemente presente direção geral de Fernando Meirelles, que também alcançou fama internacional após o lançamento do filme e dirigiu alguns longas estrangeiros posteriormente.

    Mas, técnicas à parte, o verdadeiro sucesso de “Cidade de Deus” só pode ser explicado em sua plenitude a partir de pessoas que viveram o frenesi que se seguiu após o seu lançamento nos cinemas. A narrativa frenética, as falas inundadas de gírias cariocas, as praias, as drogas, a violência extremada. O filme se tornou um clássico instantâneo, suas falas integram o imaginário popular até hoje e as reprises preenchem avidamente as grades da TV à cabo há 20 anos.

    Parte deste sonoro sucesso entre o público se dá pela narrativa quase que exclusivamente focada na população favelada e de outras classes menos favorecidas da sociedade, construída a partir de uma adaptação fiel, no entanto fortemente gráfica, de seu livro homônimo. E esta é sem dúvida uma dualidade chave para entender a importância desta produção para o paradigma da linguagem no cinema brasileiro.

    Isto porque, apesar do protagonismo dado à classe mais pobre representada no filme, a produção foi acusada de explorar a imagens desses corpos, em sua maioria negros, pobres e favelados, reforçando o estereótipo da população favelada enquanto perigosa e violenta e atrelando a história da Cidade de Deus (e do Rio de Janeiro) com uma inevitável corrupção de seus indivíduos e uma irrecuperável zona de guerra.

    O sucesso financeiro que atingiu parte dos diretores e produtores do longa, mas excluiu grande parte do elenco amador morador da comunidade, também evidencia esta incoerência da produção.

    Tal dualidade é representada metalinguísticamente pelo dilema enfrentado pelo personagem Buscapé (Alexandre Rodrigues) ao final do filme, com a decisão entre publicar a foto da corrupção da policial ou do traficante Zé Pequeno (Leandro Firmino) assassinado e ensanguentado.

    Curioso justamente porque este é dos aspectos que demonstram a intenção do filme em retratar aqueles personagens de uma maneira diferente do que se via nos jornais, filmes e outras produções audiovisuais do início do século XXI. Apesar de acabar caindo justamente nos mesmos estereótipos que buscava desconstruir ao retratar a guerra entre as facções de maneira gráfica e visceral. 

    Este também é um dos fatores que fez este produto atingir tantos públicos nacionais e internacionais, com as cenas de violência dando um forte status comercial para a produção, apesar de sua aclamada posição entre a crítica especializada mundo afora.

    "Cidade de Deus: A Luta Não Para" | HBO

    “Cidade de Deus: A Luta Não Para” | HBO

    Neste aspecto, a série ressurge não para superar o filme original em seus aspectos técnicos brilhantes, mas buscando atualizar o debate em torno daquela população marginalizada e sobre o histórico das duas cidades envolvidas no enredo, a de Deus e a do Rio de Janeiro. E nesse aspecto, a nova produção da HBO acertou em cheio.

    “Cidade de Deus: A Luta Não Para” se passa novamente na favela Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio de Janeiro, agora 20 anos depois dos acontecimentos do filme (o que seria início dos anos 2000 na narrativa, justamente a mesma época do lançamento do filme original). Muito respeitoso a linguagem do longa de 2002, a série não tem medo de explorar os mesmos personagens que deixamos para trás, pelo menos os que sobreviveram à guerra entre Zé Pequeno e Mané Galinha (Seu Jorge). 

    Temos novamente a narração de Buscapé. Agora prezando pelo seu nome profissional, Wilson, o personagem desenvolveu sua carreira como fotógrafo jornalístico, mas é acusado por seus vizinhos da cidade de deus de explorar a violência e a imagem dos favelados para vender suas fotografias para os jornais hegemônicos da zona sul. 

    O protagonista, que era símbolo de ingenuidade e da pureza adolescente no filme de 2002, agora funciona como uma metalinguagem às críticas recebidas pelo longa, possuindo a consciência da exploração que exerce sobre a imagem dos corpos retratados, mas engajado de mãos atadas ao sistema que lhe deu a oportunidade de melhorar sua condição financeira. 

    Buscapé buscará, ao longo da trama, recolocar sua posição nesta indústria da guerra que move a cidade, utilizando de seu lugar de prestígio para fazer mais do que era possível 20 anos antes. E é exatamente isto que a série irá fazer como um todo, utilizar a visibilidade do filme para atualizar debates e corrigir certos posicionamentos, de maneira que não seria possível 20 anos antes.

    image 6

    Muitos outros personagens presentes no filme (e seus atores originais) retornam para esta continuação, cada um sendo responsável por atualizar um aspecto do debate central que move a série: a vida nas comunidades cariocas e sua relação intrínseca com a violência e as disputas de poder do crime organizado  aparelhado no Estado do Rio de Janeiro. 

    É o caso de Braddock (Thiago Martins), Berenice (Roberta Rodrigues), Barbantinho (Edson Oliveira), e Cinthia (Sabrina Rosa), personagens importantes e sobreviventes dos eventos dos anos 80, retornando agora com um novo contexto e importância narrativa. É a partir deles que a série contará os desdobramentos das disputas territoriais do poder paralelo nas favelas cariocas, adicionando importantes elementos da história da cidade dos últimos 30 anos e criando uma alegoria bem direta sobre a presença do tráfico e milícia dentro do Estado.

    Outros novos personagens também surgem nesta mesma pegada, explorando e aprofundando de maneira acertada a relação do universo da série com seu histórico narrativo. Personagens como Delano (Dhonata Augusto) e MC Leka (Luellem de Castro) são ótimos exemplos do aprofundamento que é dado na série sobre a relação entre a população da favela e a disputa de poder entre o crime organizado, a polícia e o Estado.

    O roteiro da série, não mais adaptado do livro, agora faz este movimento quase que durante toda sua duração, resgatando elementos narrativos como a pobreza, a falta de educação e a falta de acesso à cidade e atualizando para perspectivas atuais, buscando se distanciar da estereotipagem comumente associada às essas populações e traçar um panorama mais profundo do grave e histórico problema de administração pública da cidade maravilhosa, totalmente aparelhada e governada pelo crime organizado.

    É bem verdade que a série também se utiliza da violência para construir sua narrativa, mas aqui vemos esta retratação não como uma ferramenta mercadológica, mas como um argumento de denúncia para a reflexão a respeito da trágica história do Rio de Janeiro. A cidade carioca, que já foi capital do país, vive uma guerra civil de disputas territoriais entre tráfico, milícias e Estado há, pelo menos, 30 anos. 

    Seria muita inocência acreditar que tal estado permanente de guerra acontece somente por que os traficantes e moradores das favelas são “maus”. Assim como foi inocência (na verdade, muita má fé) de parte da mídia hegemônica apoiar a crescente das milícias (ou policiais mineiras, como eram conhecidas) no início dos anos 2000. O problema da violência urbana carioca tem início muitos anos antes das facções tomarem conta das favelas e anda de mãos dadas com integrantes do crime organizado que dominam o Estado. É justamente sobre isso que “Cidade de Deus” quer falar, tanto o livro, quanto o filme e, agora, a série.

    Neste aspecto, a série triunfa em atualizar o debate de maneira direta e, muitas vezes, até poética. Se o longa de 2002 busca retratar, horas de maneira leve e jocosa, outras horas de maneira visceral e violenta, os efeitos da marginalização dos corpos promovido pelo Estado, agora, a série dá enfoque nos aparelhamentos que cercam e financiam as disputas de poder ocorridas nas favelas da cidade. 

    A violência, a pobreza, a miséria e a falta de acesso retornam como temas. Mas também, o tráfico de armas, silenciamento de testemunhas, conluio e improbidade jurídica são alguns dos temas que surgem como motivadores e articuladores desta situação complexa de uma das maiores cidades do Brasil. Neste aspecto, a série, assim como o filme, acerta em cheio ao deixar claro quem paga o pato de maneira brutal pelo descaso dos poderosos com a cidade: a população, em sua maioria negra, pobre e, principalmente, favelada.

    É bem verdade que esta atualização no debate certamente incidirá na parte mais conservadora dos espectadores, que amavam o filme justamente pelos motivos errados, fetichizando a violência e glorificando a política de Estado e a polícia que mata pobre favelado todos os dias. E a série parece saber deste golpe que dará no debate para com esta parte do público, construindo uma narrativa que aponta para esse grafismo violento até o final do episódio 5, mas passando por uma certa reviravolta de perspectiva para o encerramento da temporada.

    A série é tema de polêmica desde seu anúncio e continuará sendo agora até o lançamento da segunda temporada. Não preciso nem dizer que os conservadores, que agora se tornarão detratores da série, automaticamente se tornarão especialistas na linguagem audiovisual e utilizarão da brilhante excelência técnica do filme para apagar os triunfos importantes trazidos pela produção da série.

    É bem verdade que aquele primor técnico será difícil de ser alcançado e não retorna por completo aqui (especialmente a montagem, talvez uma das melhores de toda a história do cinema). Mas, além de possuir ótima execução técnica, a série acerta justamente ao optar por um outro caminho, nem ao menos se propondo a repetir as mesmas estratégias de produção do filme original, mas respeitando e referenciando a produção de 2002 ao longo de toda a temporada.

    image 7

    “Cidade de Deus: A Luta Não Para” | HBO

    É essa decisão acertada que ditará o tom e ritmo de “Cidade de Deus: A Luta Não Para”, que não se propõe em superar o filme original, mas sim aproveitar sua visibilidade nacional e internacional para atualizar, corrigir e propor novos debates sobre a cidade e as comunidades cariocas.

    Assistir essas produções, mesmo com temáticas e cenas fortes e diretas, deveria ser uma recomendação básica não somente para todos os amantes brasileiros de cinema, mas para todos os cidadãos que buscam entender um pouco mais da história e influência do crime organizado no cotidiano carioca e na política de Estado aplicada por aqui.

    Enquanto carioca e morador do subúrbio, sempre me senti especialmente sensibilizado pelo filme e acredito que a série seja uma atualização importante acerca de seu debate. O episódio final aponta para acontecimentos históricos trágicos e importantes do Rio de Janeiro e sigo ansioso para acompanhar a forma como serão abordados tais episódios.

    E quanto às reclamações dos conservadores desde o anúncio da série e agora com o desenrolar de seu enredo, só reforça a  urgência em abordar de maneira frontal as reflexões trazidas na narrativa. O audiovisual é uma ferramenta fundamental na construção do imaginário político popular, e é preciso urgentemente disputar o histórico da cidade que é berço do samba, mas, também, das milícias, justamente para que seja possível vislumbrar alternativas para garantir o seu futuro. 

    Leia também:

  • CRÍTICA | “Superman – O Filme” (1978) envelheceu como um dos bons filmes clássicos

    CRÍTICA | “Superman – O Filme” (1978) envelheceu como um dos bons filmes clássicos

    45 anos depois, “Superman, o Filme” (1978) retorna às telonas para relembrar porque é o clássico absoluto do gênero.

    Escrever sobre “Superman, o Filme” (1978) em 2024 pode ser uma tarefa difícil de se executar sem cair num certo anacronismo. Longa pioneiro no sucesso massivo dos super-heróis no cinema, o clássico filme do diretor Richard Donner, primeiro com o emblemático Christopher Reeve encarnando o Homem de aço, retorna às telonas em edição especial remasterizada nesta quinta (26). 

    Com um orçamento de US$55 milhões de dólares (cerca de US$255 milhões atualmente com correção), e faturamento de cerca de US$300 milhões (US$1,4 bilhão hoje), o longa foi grande sucesso de público e crítica à época de seu lançamento, sendo premiado com o Oscar de melhores efeitos especiais em 1979.

     Justamente por sua relevância histórica, este é um filme que já foi exaustivamente analisado por diversos críticos e pesquisadores da linguagem audiovisual ao redor do mundo. Por um lado, isso é excelente! Uma fonte de consulta infinita com opiniões e pontos de vista totalmente diversificados. Por outro lado, como contribuir com relevância sobre esse tema? 

    Acredito que a resposta dessa questão esteja, principalmente, na experiência subjetiva de cada um em relação ao filme. Não somente ao assisti-lo, mas também ao identificá-lo em suas diferentes e inúmeras reproduções, adaptações e citações ao longo desses 45 anos.

    No meu caso, lembro de assistir a icônica interpretação de Christopher Reeve pela primeira vez ainda na infância, através de uma sessão dessas de domingo da tv aberta. Dos detalhes do enredo em si lembrava pouco, mas tinha uma recordação vívida do meu pai assistindo ao meu lado e comentando o quanto foi marcante assistir no cinema o Super-homem de Reeve voando pelas cenas de maneira tão visualmente convincente.

    Desta vez, quase 20 anos depois, à convite do Festival do Rio em parceria com a Warner, pude ter a experiência de assistir este marco audiovisual da maneira como ele melhor pode ser aproveitado: na tela grande, com som dolby digital de alta qualidade.

    Isto porque, do ponto de vista cinematográfico, Superman é um clássico em todos os sentidos da palavra. Um suspiro final do que foram as produções norte-americanas da Hollywood clássica dos anos 50, adicionando a inovação técnica e estética típica da nova Hollywood dos anos 70. 

    Representante autêntico de uma época em que os longas-metragens ainda eram assistidos exclusivamente nos cinemas, este é um ótimo exemplo de produção que soube dialogar diretamente e de maneira popular com a experiência histórica da sala de cinema e toda a linguagem envolvida neste ato. Sua estética única e inovações técnicas, aliados com uma narrativa direta e leve, certamente marcaram os espectadores que assistiram na época os personagens Superman e Lois Lane (Margot Kidder) voando pela primeira vez pelos céus de Metrópolis.

    image 1

    “Superman, o Filme” (1978) | Warner

    Logo na introdução, ao apagar das luzes da sala, com as fontes azuis surgindo magicamente sobre um fundo estrelado, embalado pela trilha sonora épica, já é possível entender que estamos diante de um filme com uma identidade forte e única.

    Uma mistura delicada entre toda a grandeza de sua produção, de sua história e dos símbolos que ali estão contidos. Mistura essa que iria ditar a tonalidade e método adaptativo da maioria dos filmes de super-heróis que viriam a seguí-lo. Não necessariamente reproduzindo seus mesmos símbolos, mas imprimindo a identidade e ideologia de seus personagens através do melhor que a técnica cinematográfica poderia oferecer em cada época.

    Impossível também não citar a trilha sonora única de John Williams. Sempre se provando uma força da natureza, são as músicas de Williams que fazem o filme transitar entre o épico e o cotidiano; entre o mágico, o fantástico e o sensível. Para variar, o responsável pela trilha sonora de filmes históricos como Star Wars e Indiana Jones, também lança aqui um tema icônico, que embala toda a narrativa do filme (além de continuar sendo reconhecido até os dias de hoje, mesmo por pessoas que eventualmente não tenham assistido ao filme de Richard Donne).

    É curioso enxergar hoje, 45 anos após seu lançamento, como os filmes pioneiros de seus gêneros trabalham livremente em cima dos estereótipos mais marcantes de seus personagens, sem medo de abordar de maneira frontal, e até mesmo explícita, os principais eventos narrativos que compõem estes personagens tão conhecidos. É claro que isto ocorre porque este longa precede temporalmente a grande maioria dos filmes de seu gênero, sendo justamente ele o criador destas convenções que viram a ser reproduzidas posteriormente. 

    São nestes filmes que vemos esta narrativa de super, tão exaustivamente explorada na atualidade, em sua versão menos contaminada por fórmulas mercadológicas e mais fiel ao que o personagem representava na época (uma vez que, em 1978, o personagem “Superman” já tinha mais de 40 anos de existência).

    Mas afinal, o que diabos o personagem representava na época? E mais, o que será que ele representa hoje em dia?

    Mergulhando na linguagem em si, aqui vemos talvez a versão mais poderosa do Homem de aço, capaz de feitos absolutamente grandiosos. Ao mesmo tempo, seu lado humano, representado na persona de Clark, se mostra talvez a mais pura e ingênua de todas elas. É esta dualidade, brilhantemente performada por Reeve, que dita  a mensagem principal que o filme carrega.

    Ao final dos anos 70, o mundo vive uma arrastada extensão da Guerra Fria, com a disputa ideológica entre Estados Unidos e União Soviética se expandindo para as diferentes esferas da comunidade internacional. No cinema não foi diferente.

    Não vou me alongar muito aqui na análise política dos filmes norte-americanos  produzidos durante o período da Guerra Fria, mas a interpretação dos símbolos do filme “Superman, o Filme” que ignora o contexto histórico em que a produção esteve inserida é justamente aquela que tende ao anacronismo. 

    Já ao final da década de 30, quando os Estados Unidos ainda se recuperavam de grave crise econômica, o alter-ego de Clark Kent surge nos quadrinhos como uma salvação milagrosa para o imaginário cultural do povo, um sopro de esperança para as camadas mais populares da sociedade, onde os quadrinhos possuíam grande entrada devido ao seu baixo valor. 

    Já ao final da década de 70 (data de lançamento do filme de Donne), a posição econômica e política dos EUA na comunidade internacional havia mudado, assumindo protagonismo internacional e travando guerra ideológica com a URSS.

    Ainda assim, novamente um dos personagens mais identificados com a cultura norte-americana retorna ao foco da discussão popular, desta vez propagando o sonho americano (personificado em Superman) para o mundo inteiro através do cinema, oferecendo o seu modelo como triunfante frente ao outro polo ideológico e bélico presente no globo. Em alguns aspectos, esta interpretação do personagem fica muito evidente, como na cena em que o Homem de aço voa na tentativa de impedir que mísseis caíam no território norte-americano, preocupação presente no imaginário coletivo do período da Guerra Fria e diversas vezes retratado em filmes e séries norte-americanos.

    Superman surge aqui (assim como a trilha sonora de John Williams) como uma força da natureza que se impõe moralmente diante da corrupção dos homens, estabelecendo a ordem e respeitando as regras (a menos que estas regras impeçam que ele faça “o que é certo”). 

    A entrevista com Lois Lane no terraço de seu apartamento expõe a tentativa de consolidação de Superman como mártir moral do povo (e, possivelmente, do mundo inteiro) de acordo com a moralidade cristã protestante anglófona norte-americana: ao se apresentar, Superman informa que não conta mentiras e que sempre faz o que é certo. Depois, ao ser questionado por Lois o motivo do kryptoniano estar na Terra, Kal-El prontamente responde I’m here to fight for truth, justice and the american way! (“Estou aqui para lutar pela verdade, pela liberdade e pelos ideais norte-americanos”). Curioso pensar que Jor-El tenha enviado seu filho kryptoniano à Terra justamente para defender os ideais dos Estados Unidos, não é? 

    A persona humana do personagem também não fica para trás na representação moral idealizada do sonho americano. Clark, apesar dos grandes poderes, trabalha como jornalista no “Planeta Diário”. Após uma infância pacata familiar na área rural norte-americana, ele abdica de qualquer condição material que seus poderes poderiam lhe gerar para que pudesse viver de maneira simples. Sua realização principal não está em riquezas, mas sim nas relações que constrói ao longo da vida. Sua vida é dedicada à vocação de benfeitor da humanidade, liderando os humanos para o progresso sem jamais interferir no curso natural da História.

    De toda forma, é claro que esta interpretação do personagem também se consolidou ao longo dos anos que sucederam o lançamento do longa e os desdobramentos históricos do século XX. Inclusive, até mesmo produções contemporâneas estadunidenses discutem esta visão, apresentando personagens como Homelander (Antony Starr) da popular série The Boys (2019-2024).

    Outras cenas curiosas representam esta adaptação do Super-homem enquanto mártir moral do ocidente, como quando o Homem de aço aconselha à Lois que pare de fumar para evitar câncer de pulmão ou quando os dois personagens flertam abertamente falando da cor das roupas íntimas de Lois, enxergadas por Clark através de sua visão de raio-x após uma cena de flerte entre os personagens típica de melodramas da época. 

    image 3

    “Superman, o Filme” (1978) | Warner

    São detalhes narrativos que falam muito do pensamento corrente da época, criando um personagem que jamais passará dos limites aceitáveis pela sociedade, mesmo possuindo todos os poderes até para subjugar e dominar. São os norte-americanos imprimindo, através de uma estética arrojada e técnicas pioneiras, uma amostra de sua bondade (que é, obviamente, proporcional ao tamanho de seu poder de fogo).

    O homem de aço aqui realiza seus maiores feitos sem desferir nem um soco, realizando todos os seus atos mais marcantes de heroísmo dos quadrinhos clássicos. Kal-El salva o gatinho de cima da árvore, evita que um avião em pane caia em queda livre, ao mesmo tempo ele é capaz de desviar o curso de um míssil. O foco aqui não está em cenas de ação e lutas coreografadas, mas sim nas possibilidades inimagináveis que tais poderes proporcionam à um homem e nas implicações filosóficas que sua  própria existência  garantiriam. Prepare-se para um final muito surpreendente e polêmico, aliás, onde o Homem de aço será capaz de feitos realmente impressionantes!

    Diante de todo este contexto, reforço que o cinema é o lugar perfeito para embarcar em tão brilhante execução. O filme realmente causa uma sensação fantástica e sua duração, que pode ser considerada longa para atual geração de espectadores, transcorre de maneira divertida e agradável. Algumas cenas são longas e contemplativas, criando uma sinergia entre o espectador e as imagens reproduzidas em tela. Mesmo com uma tecnologia muito inferior à atual, a técnica aplicada nas cenas de voo de Superman triunfam em criar a verdadeira sensação de voar junto do personagem como muitos outros filmes tentaram posteriormente sem sucesso.

    Os efeitos visuais envelheceram de maneira muito honrosa ao seu material original, imprimindo um certo glamour atemporal à estética do filme, que dialoga bem com a já citada e intencional dualidade de seu protagonista e com a própria narrativa. 

    Lex Luthor (Gene Hackman), também aparece aqui de forma um pouco diferente do que os espectadores mais novos podem conhecê-lo. Acompanhado de um atrapalhado ajudante, o arqui-vilão surge aqui em uma versão bem humorada funcionando como um alívio cômico ao filme e reforçando a linguagem popular e leve da narrativa.

    Fica nítido que o filme foi trabalhado para ser não somente uma versão pioneira de Superman nas telonas, mas também a definitiva. Impossível de ser superada, com o personagem no ápice de seus poderes e sua representação ideológica, diante de uma lógica de produção norte-americana que vivia o auge de sua reformulação narrativa e consolidava de vez sua influência frente ao mercado cultural do mundo inteiro. Não à toa, todos os principais elementos técnicos dialogam de maneira sublime com a ideologia embutida nesta história, o que torna todos os elementos cinematográficos envolvidos na produção absolutamente marcantes.

    Tudo funciona como um reloginho neste longa, que imprime sua marca através de elementos proeminentes, como a encarnação histórica de Christopher Reeve, a narrativa objetiva e leve, os efeitos especiais inovadores e a trilha sonora icônica que nos conduz dos eventos mais épicos aos mais cotidianos. Assisti-lo no cinema é uma experiência aconchegante e mágica, que certamente remete seus espectadores ao clima do que seria a vivência de uma sala de cinema do final da década de 70 e emula toda a grandiosidade dos filmes hollywoodianos dos anos 40 e 50.

    Por fim, vale muito lembrar que “Superman, o Filme” (1978) retorna às telonas em versão remasterizada. Uma ação da Warner para celebrar os 45 anos do filme, além de promover o documentário contando a trajetória de seu ator principal: “Super/Man: The Christopher Reeve Story”. 

    O documentário estreia dia 17 de outubro e conta a história de vida do astro americano, que saiu do anonimato ao estrelato ao protagonizar o filme objeto de discussão desta crítica. Após grande sucesso do filme e suas sequências, o ator virou símbolo e teve sua imagem fortemente vinculada ao próprio Superman no imaginário popular. Em 95, Reeve sofreu um acidente e perde os movimentos de seu corpo do pescoço para baixo. A partir daí, passa a ser símbolo também de superação, apoiando diferentes causas sociais financeira e ideologicamente.

    Se você nunca viu, ou mesmo se já viu, vale muito correr para assistir “Superman, O Filme” (1978) nas telonas. É certeza de uma experiência única, misturando fantasia, elementos de ficção científica, uma estética absolutamente glamourosa (as botas vermelhas são demais!) e trilha sonora marcante. Sem contar a eterna encarnação de Christopher Reeve como o Homem de aço, que perdurará eternamente como uma das maiores sinergias entre personagem e ator. É um clássico que, como qualquer outro que atinge o status de atemporal, envelhece como um vinho, reforçando os motivos que o fizeram atingir tal patamar e imprimindo experiências que só seriam possíveis através de sua própria existência.

    Leia também:

  • CRÍTICA | Golpe de Sorte em Paris é um filme do século passado

    CRÍTICA | Golpe de Sorte em Paris é um filme do século passado

    Em Golpe de Sorte em Paris, o polêmico diretor Woody Allen retorna com mais do mesmo para quem gosta de desligar o cérebro

    É praticamente impossível falar sobre o filme Golpe de Sorte em Paris, mais novo longa do renomado diretor Woody Allen (89), sem mencionar o histórico, no mínimo, controverso do diretor e roteirista. Entre diferentes acusações de assédios e abusos sexuais, a maioria vinda  de membros de sua própria família, talvez o episódio mais polêmico (e de maior repercussão midiática) seja o casamento entre Allen e Soon-Yi Previn em 1992, que dura até os dias de hoje. Além da grande diferença de idade entre os dois, Soon-Yi também é filha adotiva de Mia Farrow, ex-esposa de Woody Allen, e irmã adotiva de Dylan Farrow, supostamente abusada por Allen também em 92 e principal acusadora do diretor.

    "Golpe de Sorte em Paris" | O² Filmes

    “Golpe de Sorte em Paris” | O² Filmes

    Partindo da premissa de que é impossível analisar qualquer obra sem contextualizar a vida de seus autores, o estigma de sua conturbada relação familiar e graves acusações criminais sempre precederá as impressões de seus filmes para espectadores mais atentos. Esta, como alguns outros elementos que serão explorados mais à frente neste texto, será para sempre mais uma marca registrada na interpretação dos filmes de Woody Allen, que segue, do auge de seus 88 anos, a saga incansável de lançar praticamente um filme por ano.

    Falando em marcas registradas, além da já citada, este filme carrega todos os outros elementos mais característicos do diretor americano, que começou a ganhar destaque na Nova Hollywood dos anos 70. Introdução em cartelas e ligh jazz de trilha sonora, o personagem escritor com tendências de mania e obsessão, a cidade como personagem (nesse caso, Paris) e, principalmente, o tom leve e, ao mesmo tempo, ácido com que o diretor desenvolve suas narrativas.

    Aprofundando mais no audiovisual em si, vale muito destacar o trabalho simples e primoroso de cada um dos setores quee constroem, de maneira sólida, direta e divertida, um longa-metragem nos moldes mais clássicos do movimento que ficou conhecido como Nova Hollywood. O filme funciona quase como uma fábula sobre sorte e azar, envolvendo seus poucos personagens numa trama de crime e traição sem abrir mão da comicidade e ritmo de comédia romântica.

    A história gira em torno de Fanny (Lou de Laâge), uma jovem francesa que reencontra, por acaso, andando na rua, Alain (Niels Schneider), um antigo admirador secreto dos tempos de criança. A trama ganha proporções mais complexas na medida em que Fanny começa a se relacionar com Alain, mesmo sendo casada com o rico, controlador e misterioso Jean (Melvi Poupad), que irá até as últimas consequências para manter o status de sua “noiva-troféu”.

    O roteiro busca reforçar a dúvida da protagonista diante dos dois pretendentes, que se opõem de maneira vertical em todos os aspectos. Alain é um escritor, apaixonado pela vida, pelo acaso e por Fanny. Já o empresário Jean é um ricaço frio parisiense, que faz mistério sobre a real natureza de sua riqueza e possui um histórico de sociedades suspeito.

    "Golpe de Sorte em Paris" | O² Filmes

    “Golpe de Sorte em Paris” | O² Filmes

     Alain acredita que reencontrou Fanny na rua por pura sorte. Já Jean tem certeza que constrói sua própria sorte e que seu casamento com Fanny é advento de seus próprios méritos.


    Além das características básicas de cada personagem, a direção também opta por uma linda alternância de cenários e cores, que se associam diretamente aos sentimentos de Fanny ao se relacionar com cada um deles.

    Enquanto Alain é apresentado com cores quentes, normalmente ao ar livre ou em lugares pequenos e aconchegantes, Jean reforça o estereótipo do ricaço frio com cores azuladas, cenários internos grandes e opressores e comportamento controlador. Os diversos funcionários que servem Jean também reforçam seu comportamento narcisista ao serem retratados sempre parcialmente nos planos, nunca completamente incluídos na imagem e sempre distanciados de seus patrões.

    A fotografia capta de maneira sublime esta oposição, utilizando a cidade de Paris de maneira magistral (e fazendo questão de fugir de suas representações mais estereotipadas).  A adição do jazz como trilha sonora em associação à trama e fotografia consolidam o clima divertido do longa, que funciona como uma longa, ácida e agradável piada, sendo sua triunfal punchline reservada ao final do filme.

    A mudança de ritmo no meio do filme e exploração surpreendente de algumas personagens também são elementos que ajudam a distanciar a obra dos enlatados de comédia hollywoodianos da atualidade, mostrando que é possível fazer um filme que seja ao mesmo tempo tradicional, divertido e inventivo, com uma trama deliciosa de acompanhar, aliando simplicidade e criatividade.

    É comum, ao criticar filmes blockbuster de caráter mais “pipoca”, receber comentários como o seguinte:

    “Eu vejo o filme para ‘desligar o cérebro’ e embarcar na história.”

    Criando um estigma de que filmes ditos cults teriam necessariamente que  possuir uma narrativa mais complexa, com alto grau de dificuldade para interpretação. E pior, implicando que filmes ditos “pipocas” teriam que incluir narrativas simplistas e lineares, excluindo possíveis complexidades de seus personagens.

    Neste caso, Golpe de Sorte em Paris é um prato cheio para refutar essa lógica. O filme é construído tecnicamente de maneira primorosa, a narrativa é leve, engraçada e de fácil compreensão, dando de 10 a zero na grande maioria dos filmes atuais de comédia que mal conseguem arrancar uma cena com risadas de seus espectadores, como é o caso de filmes recentes como “Todos Menos Você” (2023) e “Que Horas Eu Te Pego?” (2023)

    "Golpe de Sorte em Paris" | O² Filmes

    “Golpe de Sorte em Paris” | O² Filmes

    Por fim, o novo longa de Woody é, definitivamente, um filme do século passado, no bom e no mal sentido: Praticamente exclui questionamentos sociais além de uma breve oposição de classe entre os protagonistas, não abarca questionamentos sobre cibercultura, internet e novas tecnologias. Ou até mesmos questões de gênero, raciais, entre outras pautas latentes do século XXI. Não utiliza nenhum efeito de imagem inovador (o que não é um problema, na verdade) e carrega a maioria de elementos e marcas registradas que seu polêmico diretor carrega em todos os seus numerosos filmes desde os anos 70. 

    Mas também, com protagonismo da fotografia e trilha sonora, o longa trabalha de maneira sublime e criativa as diferentes ferramentas que constroem uma narrativa audiovisual, utilizando os recursos de maneira muito sensível ao conteúdo, fugindo de clichês do gênero e personagens unidimensionais. Com originalidade e privilegiando decisões artísticas às mercadológicas. A decupagem e direção seguem um modelo clássico popular do século XX e privilegiam a criação e sensibilidade artística à exploração dos aparatos técnicos disponíveis. Uma receita batida de outros tempos de Hollywood, mas que pode ser exatamente um pouco dos que os filmes atuais de comédia precisam.

    Ao longo de sua longa carreira, Woody Allen acertou e errou inúmeras vezes ao produzir e reproduzir sua fórmula particular de criar filmes. Neste caso, trata-se de um acerto. Um bom e divertido filme de comédia, o primeiro do diretor em que a língua principal não é o inglês. Sua duração transcorre de maneira muito agradável e o final fornece uma espécie de satisfação irônica, como uma piada de um senhor de idade que, apesar dos pesares, segue produzindo ativamente e entregando obras com sua qualidade típica.

    Leia também:

  • CRÍTICA | Robô Selvagem é tudo menos o seu título

    CRÍTICA | Robô Selvagem é tudo menos o seu título

    Robô Selvagem vale ser prestigiado no cinema só pela incrível técnica de animação.

    Ao acordar em um local desconhecido, que não apresenta a espécie humana para ajudar, sendo este um objetivo pelo qual foi criada, a robô decide ficar na selva quando encontra um ganso sobrevivente de um acidente que matou sua família e necessita de auxílio para continuar vivo.

    Conforme a obra se desenrole, novos animais vão surgindo, ganhando presença e todos os problemas que precisam ser recebidos, vão ganhar sua conclusão até a reta final. Ou seja, os clássicos arquétipos vistos na maioria das animações se encontra aqui, seja uma mensagem bonita para sua conclusão ou a luta final que dá no que você espera.

    thumb 1920 1367326

    Robô Selvagem | Dreamworks

    Robô Selvagem é clichê, mas de modo algum deve ser desmerecido por isso, visto que a maioria dos filmes são assim atualmente e sua jornada, ainda que óbvia, consegue ser extremamente prazerosa de se acompanhar. Os personagens são carismáticos, as vozes estão boas, a trilha sonora de Kris Bowers é linda, do tipo que sai da sala com ela na cabeça, e a direção de Chris Sanders é competente.

    Agora, a animação desse filme é realmente o que o torna grande e atrativo. Da mesma forma que Avatar tinha uma história batida e sempre foi vangloriado pelos seus efeitos visuais, o modo como foi produzida a arte desse longa-metragem, em conjunto com o cuidado dado para a direção de arte e fotografia, é aquilo que o faz ser um chamariz para ir ao cinema.

    A mistura de 2D com 3D é uma escolha que tem se mostrado cada vez mais acertada para o gênero de animação recentemente, então já tendo seguido este caminho em “Gato de Botas 2: O Último Pedido“, a nova produção da Dreamworks se estiliza da mesma forma, só que aposta mais em uma arte que remete à uma pintura. Tornado este caso um espetáculo visual!

    thumb 1920 1355089

    Robô Selvagem | Dreamworks

    A única situação da narrativa que pode quebrar a imersão vem da infeliz escolha de nada parecer realmente um risco. O robô e os animais se metem em umas situações que na cena seguinte são superadas, tirando o senso de perigo e urgência que são necessários para se comover mais com o todo.

    Todavia, vale dizer que a mostra verdadeira do mundo selvagem dá um gás interessante para um desenho feito direcionado para o público infantil, porque os animais morrem direto na natureza, e no filme se escuta acontecendo, do mesmo jeito que o tal caso recorrente chega a ser feito de piada, que em sua grande maioria funciona, então traz uma veracidade que costumava ser incomum em animações antigas que apenas citavam a ideia do ciclo da vida.

    No mais, trazer um robô cuidando de um animal e se sentindo solitário, ao mesmo tempo que fica procurando concretizar aquilo que foi feito pra fazer… ajudar, acaba por investir em uma reflexão sobre objetivos, o que fomos criados pra fazer e o que talvez pareça prejudicial de primeira, vai encaminhar para uma jornada que envolverá mais gente e mudará cada uma de um jeito positivo.

    Sendo assim, ao trabalhar mensagens como gentileza, comunhão e amor, Robô Selvagem acaba sendo uma animação positiva, com um visual estonteante, um ritmo contagiante e um universo interessante que ainda pode ser explorado no futuro, mesmo que não precise. Indo contra o medo proposto pelo título, a oportunidade de desfrutar algo caloroso por uma hora e meia não deve ser perdida.

    Veja também: