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[ENTREVISTA] Todo Dia a Mesma Noite: Atriz Raquel Karro e a psicanalista Mariana Brito falam sobre a minissérie da Netflix

Na última quarta-feira, 25, a Netflix lançou a sua nova minissérie ficcional. “Todo Dia a Mesma Noite” chegou para contar a história real do caso da Boate Kiss que tirou a vida de 242 pessoas. A tragédia que aconteceu em 2013, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, marcou o país devido à negligência dos envolvidos e a comoção entorno do luto dos familiares.

Dez anos depois, o novo lançamento do streaming se inspira no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex para reforçar a importância do não esquecimento do que aconteceu naquele fatídico 27 de janeiro. Para ajudar a entender por que a nova produção é tão necessária, o Portal Cinerama conversou com a atriz Raquel Karro, que interpreta a personagem Livia, e a psicanalista Mariana Brito.

Por que uma minissérie sobre uma famosa tragédia se torna interessante?

De fato, hoje em dia é muito comum ouvir uma pessoa dizer que vai assistir a algo para relaxar e ligar a TV ou smartphone para ver alguma produção sobre assassinato ou tragédia. Tem se tornado cada vez mais normal o hábito de consumir filmes e séries sobre temáticas vilanescas ou de situações tristes, mais ainda quando é algo que retrata um fato da vida real.

Por se tratar de obras que podem gerar incômodo e receio em relação aos seus temas, se torna um pouco complicado entender ao certo o porquê de elas serem tão procuradas. Para explicar esse fenômeno, conversamos com a psicanalista Mariana Brito (27).

Na visão da profissional, é muito interessante enxergar como as produções que abordam esses assuntos têm crescido cada vez mais. Para ela, esse movimento faz sentido quando se avalia que os humanos são seres naturalmente agressivos e encontram nessas situações a oportunidade de se colocar no lugar do outro e vivenciar aquela sensação.

O ser humano tem um lado agressivo, violento, destrutivo, hostil, e ele não é facilmente expressado em sociedade, até porque existem limites do que a gente pode, ou não, fazer socialmente. Envolvem questões morais, éticas, de direito, pessoais de como cada um limita essas tendências. E isso acaba tendo de ser direcionado para outras coisas, para que a gente consiga descarregar a nossa raiva, ódio e violência”, explicou Mariana.

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Mariana Brito – Psicóloga e psicanalista

A busca por produções “True Crime” ou de tragédias que ocorreram na realidade revelam a necessidade que as pessoas têm em exprimir e experimentar sentimentos e sensações que não podem ser vivenciados nas relações sociais do dia a dia.

É uma forma que as pessoas encontram de, às vezes até sem perceber, entender um pouco mais de si mesmas, da sua própria natureza humana, de como as pessoas são capazes de fazer certas coisas, ultrapassar limites e cometerem crimes”, completou Brito.

Mas, a minissérie “Todo Dia a Mesma Noite” não é só uma produção qualquer sobre uma tragédia

É importante ressaltar que, diferente de muitas produções, “Todo Dia a Mesma Noite” não busca o sensacionalismo, tão pouco tenta ganhar a audiência usando a dor como meio para tal. Na obra dirigida por Júlia Rezende, o sentimento dos familiares é responsável por guiar o público para questionamentos pertinentes a respeito do caso. Na tentativa de fazer o telespectador se questionar junto sobre o porquê tamanha negligência.

Além disso, é possível compreender por meio da obra que, falar sobre a forma como as pessoas lidam com o luto pode ser uma maneira saudável de encarar a situação. Durante a conversa, Mariana Brito, que também é psicóloga, falou que é bom tratar de temas assim, pois são todas questões sociais.  

A gente vê morte, luto, vários tipos de sofrimento que ainda, inevitavelmente, são tidos como algum tipo de tabu na sociedade. Ainda não é tão fácil falar sobre. A gente tenta evitar, tenta não pensar, porque realmente é muito sofrido. Mas, é real. Acontece. Faz parte da nossa vida e em algum momento a gente vai ter de lidar com esses temas”, disse Mariana.

Reforçando a opinião da psicanalista, a atriz Raquel Karro, que interpreta a personagem Livia, mãe de uma das vítimas, afirmou que o processo de atuação “foi bonito, intenso e denso”.

Acho que o maior desafio era sair de um sentimento único que toma meu corpo quando penso nessa perda, a perda de um filho, e conseguir mergulhar nos momentos distintos, nos tempos distintos daquela saudade, daquela dor. A série cobre vários anos, aquelas mães e pais passaram por muita coisa! E era importante trazer a presença para cada situação para não ficar em um único estado”, comentou Raquel.

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Raquel Karro em cena na minissérie “Todo Dia a Mesma Noite” – Divulgação/Guilherme Leporace/Netflix

Então, produzir uma obra que fala sobre o sentimento traumatizante de quem passou por um episódio como o de Santa Maria, pode se tornar algo benéfico. Tanto para as pessoas que estão enfrentando a luta e a dor da perda diretamente ligadas ao caso da Boate Kiss, como também, para quem assiste ao programa e pode estar passando por um momento parecido.

A gente vive em uma época em que sofrer é tido como fragilidade, (como sinônimo) de não saber lidar, de que temos que guardar e não podemos demonstrar porque isso é fraqueza, e na verdade não. Na verdade, é o contrário. É totalmente natural sofrer, ficar mal”, afirma Brito. “Quando você tem acesso à mídias e histórias que retratam esses temas, você também acaba tento contato com as mais diversas formas que existem de viver o seu luto. Principalmente, quando perder alguém que ama, como no caso da minissérie”, completou.

A carga emocional de produzir a minissérie “Todo Dia a Mesma Noite”

A princípio, é possível imaginar o enorme trabalho por trás da produção da minissérie. Quando se leva consideração que a obra apresenta novos pontos de vista sobre um dos casos mais famosos do Brasil, já se pode ter ideia da magnitude do processo criativo. Em declaração ao Cinerama, a atriz Raquel Karro revelou um pouco do preparo com a equipe de atuação para as gravações.

No começo do processo assistimos à uma palestra de duas terapeutas especializadas em luto coletivo, foi muito forte! Era pelo zoom, toda a equipe participando, as câmeras iam sendo desligadas porque um a um, uma a uma, íamos caindo no choro. Lembro de uma frase que tem me ajudado em um luto pessoal – meu pai faleceu não faz muito tempo: fazer as pazes com a tristeza para sentir melhor a saudade’”, declarou Raquel sobre a fase de preparação para viver sua personagem.

Em seguida, Karro completou: “Também nos encontramos, eu e Paulo (Gorgulho), com a Júlia (Rezende) e a Carol (Minêm) – diretoras – para ler e discutir as cenas, os diálogos. Também fizemos um encontro de todas as mães e pais com a Júlia e a Carol, foi bem bonita essa conversa, para nos reconhecermos como grupo. Grupo de atrizes e atores, grupo de personagens, grupo de artistas atravessados e atravessadas por aquelas questões. A dor inimaginável.”

Por que é tão importante revisitar o caso da Boate Kiss e colocar isso na minissérie “Todo Dia a Mesma Noite”?

Eu fiquei muito atenta para o momento de fazer a cena em que eles recebem a notícia. E ela foi gravada no Dia das Mães! Veja isso… Mas a coisa que me surpreendeu mesmo foram as cenas na casa da família, que gravamos por último. Entrar na casa sem o filho, sabendo que ele não voltaria, foi uma sensação para a qual eu não estava preparada’’. Essa foi a resposta de Raquel quando perguntada sobre a cena que mais a marcou na minissérie.

Decerto, ainda que a pessoa que assiste à obra não tenha vivenciado uma situação parecida, é muito difícil não se identificar. Querendo ou não, o mundo sabe o que aconteceu naquela madrugada, e a luta por justiça não pertence somente a quem estava diretamente ligado ao caso. É uma luta conjunta, onde o sentimento de indignação é compartilhado.

Além do mais, é muito provável que existam pessoas passando pelo mesmo sentimento. Portanto, é legítimo que o espectador tenha o direito de assistir à uma produção em que seja possível olhar, compreender o sentimento alheio e se enxergar naquela posição.

Quando perguntada sobre a possibilidade da minissérie desencadear um gatilho emocional em quem assiste, Mariana Brito explicou que isso se define de acordo com a intensidade que a pessoa tem com o que está sendo apresentado.

É inevitável que a gente se identifique com temas como esse e histórias como essa. Então, quando existe algum conteúdo, algum assunto que é gatilho, você se sente bloqueado. É muito angustiante e doloroso. Mas, nesse caso, só quem pode saber e definir o que é gatilho é cada pessoa. Não é que vai ser fácil de assistir, mas o gatilho tem muito a ver comno que isso atinge aquela pessoa‘’’, declarou.

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Todo Dia a Mesma Noite – Divulgação/Guilherme Leporace/Netflix

Levando este ponto em consideração, é possível se questionar se deve haver algum limite para o que pode ou não ser reproduzido a respeito de casos reais. Sobre isso, Mariana diz o seguinte:

Existe uma dificuldade de se estabelecer um limite, porque isso é muito particular. É muito difícil definir o que vai causar o quê nas pessoas. Claro que existem assuntos que são mais sensíveis e podem afetar mais, mas é difícil delimitar como isso vai atingir cada um. Talvez, um ponto importante seja a forma como isso é tratado. Você pode falar sobre todos os assuntos, inclusive é importante e necessário que você fale, mas a forma como eles vão ser tratados é o que pode estabelecer esses limites”, finalizou.

A arte precisa dar abertura para que pensamentos, sentimentos, ações se fomentem em cada um, em cada uma. Pelo menos é assim que eu entendo. Mas é certo que as pessoas vão se conectar com a luta daquelas famílias tanto quanto com a dor”, concluiu a atriz Raquel Karro.

Sendo assim, pode-se entender que a exibição da minissérie “Todo Dia a Mesma Noite” possui uma carga de importância enorme. Uma vez que, a obra consegue alinhar os fatos ocorridos na tragédia da Boate Kiss, com a dor do luto dos familiares e a incessante luta por justiça que ainda perdura. Definitivamente, a obra de Júlia Rezende existe para manter viva a memória sobre uma história que jamais deve ser esquecida.

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